“A ciência é uma disposição de aceitar os fatos mesmo quando eles são opostos aos desejos.” B. F. Skinner
“Eu não quero acreditar, eu quero saber!” Carl Sagan
O atual contexto de pandemia do novo coronavírus deu espaço para que indagações em relação à ciência viessem à tona. Notícias e informações acerca do tratamento e prevenção da COVID-19 foram divulgadas e disseminadas em todos os meios de comunicação. Nesse contexto de aumento de circulação de orientações sanitárias, a veracidade das informações começou a ser contestada. De repente, autoridades sanitárias (cientistas sérios e instituições de renome) estavam sendo contraditadas com argumentos irrisórios e baseados em fontes nada confiáveis.
Tais questionamentos se apresentaram em uma moldura que, para além de assuntos relacionados à pandemia, continham posicionamentos políticos, econômicos, classistas e crenças populares e até mesmo conspiratórias.
Seria um exagero afirmar que vivemos duas pandemias simultaneamente? Uma que acometeu aproximadamente 219 milhões de pessoas em todo mundo e tirou a vida de mais de 4 milhões. Do outro lado, outra que, se não fez diretamente uma vítima fatal, certamente embarreirou a adesão de práticas sanitárias de prevenção coletiva e autocuidado. A primeira é a pandemia de COVID-19 e a segunda a atmosfera de desinformação que paira sobre o mundo. O que há de comum entre ambas é sua facilidade de viralização, que ultrapassa barreiras físicas, sociais e até mesmo racionais.
Neste cenário, os conceitos de ciência, anticiência, pseudociência, negacionismo e fake news têm se tornado cada vez mais comuns no vocabulário dos brasileiros. No entanto, essas palavras podem se manifestar como conceitos vazios ou providos de significados diferentes aos originais, o que construiria argumentações truncadas ou até mesmo incoerentes. Com o objetivo de nivelar a conceituação e garantir que estamos partindo de um referencial teórico comum para tecer a construção deste texto, serão apresentados os seus significados.
Pilati (2018, p.11) afirma que “é essencial saber o que caracteriza um conhecimento para que possamos chamá-lo de científico.” Desse modo, “conhecimento científico é reconhecer que o que sabemos pode ser falho, e que, mesmo eventualmente falho, é útil naquele momento porque existem evidências que sustentam aquele conhecimento.” (PILATI, 2018, p. 11). O conhecimento científico, apesar de ser o mais confiável que temos, não se constitui como uma verdade absoluta e está em constante processo de refutação, podendo ser ultrapassado por outro e até mesmo falseado diante de novos dados. Carl Sagan reflete que esse tipo de conhecimento tem duas características fundamentais: abertura à novas ideias (mesmo que mirabolantes) concomitante ao exame cético e o escrutínio criterioso delas (SAGAN, 2006).
Ocasionalmente, a comunidade leiga ou mesmo autoridades políticas rejeitam e chegam a atacar os métodos, técnicas e conhecimento científicos. Paralelamente, defendem ideias sem precedente científico algum como conhecimento mais correto, compatível com a realidade. Quem lembra da caracterização de universidades públicas como espaço de balbúrdia? Aqui, estamos falando de anticiência, uma postura adotada de cidadãos comuns à políticos de grande autoridade.
Pignotti (2009) delineia como pseudociência o agrupamento de crenças e de atitudes que são utilizadas através de métodos sem sustentação em conhecimento científico, mas mascarado e defendido fervorosamente como se fosse. Assim como houve uma força-tarefa dos cientistas à procura de um tratamento eficaz e métodos de prevenção à propagação da infecção, houve também ondas de desinformação e viralização de notícias falsas a fim de descredibilizar estudos científicos e, simultaneamente, divulgar apologia a tratamentos não eficazes ou sem nenhuma evidência científica robusta.
Nossa percepção sobre a realidade é falha e facilmente influenciada por questões que ultrapassam a própria realidade objetiva. Para compreender esse processo, a ciência aplicada social e cognitiva tem se debruçado para elucidar o que foi caracterizado como viés cognitivo. O negacionismo da informação científica pode estar relacionado a crenças pré-estabelecidas, contexto em que a pessoa, não deliberadamente, privilegia e seleciona informações que estão de acordo com o que ela já acredita ou que faz sentido dentro do seu referencial vivencial e teórico. Esse efeito é classificado como Viés de Confirmação, o que Faber (2014, p. 5) conceitua como “tendência de concordarmos com pessoas e ideias que concordam com as nossas”.
Outro viés conhecido é o da disponibilidade, que se refere à “tendência de os indivíduos atribuírem conclusões precipitadas acerca de um fenômeno complexo quando expostos a uma visão parcial acerca dele” (PINTO; SBICA; CASONATO, 2021, p.10). Assim, a experiência de ser submetido a visualizar a informação várias vezes, ou seja, que ela esteja disponível em alta frequência, pode induzir as pessoas a acreditarem que o mais comum é a regra.
Os efeitos dos Vieses da Confirmação e da Disponibilidade intervém no modo como o indivíduo escolhe acreditar naquilo que é mais confortável, que não gera conflito com sua crença, cultura e que reforça repertórios convenientes a sua ideologia. Vale a pena ressaltar que as pessoas podem funcionar sob controle dessas regras pré-estabelecidas sem discernimento nenhum de que estão operando sob influências delas, não da realidade.
Essas são algumas das explicações do porquê as fake news têm se tornado cada vez mais populares, mesmo quando são desmistificadas através de comprovações a partir de evidências, causando desconforto psíquico no sujeito. Nessa situação, os valores e crenças entram em contradição, o que gera, então, o efeito de Dissonância Cognitiva.
A teoria da dissonância, que explica o mecanismo por meio do qual as pessoas acomodam incoerências entre suas crenças e seu comportamento, nos ajuda a compreender como e por que somos capazes de acreditar em coisas que não possuem evidências na realidade. Acreditamos mesmo que tenhamos evidências contrárias àquilo que acreditamos (PILATI, 2018, p. 13).
Em busca de diminuir o desconforto gerado pela informação divergente, o indivíduo utiliza uma estratégia mental, o Raciocínio Motivado – para que ele não tenha que abrir mão de suas crenças. Essa estratégia consiste em encontrar falhas nessa nova informação, com o intuito de descartá-las e fortalecer suas próprias convicções (PILATI, 2018).
Tal divergência entre evidência e a crença, no viés do Raciocínio Motivado, pode provocar o efeito backfire, no qual o sujeito ao ser confrontado com fatos, se tornaria ainda mais decidido em relação à sua crença, ou seja, a tentativa de fazer com que alguém fique sob controle dos fatos o torna mais convicto do que ele já acredita, ou seja, o tiro sai pela culatra
Nesse sentido, é possível “entender” a razão pelo qual alguns sujeitos acreditam, disseminam e multiplicam notícias falsas, assim como um outro efeito, o Dunning-Kruger, descrito como “é a expressão empregada para designar a ignorância, a incapacidade, a inconsciência ou falta de habilidade das pessoas em reconhecer a própria incompetência e seus erros” (MIGUEL, 2017, p. 9).
O resultado disso é uma nova pandemia, a da desinformação, cenário em que as pseudociências apresentam mais ou a mesma credibilidade que a ciência. As consequências, dentre várias, são o descumprimento de orientações e normas feitas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e outras entidades sanitárias internacionais e nacionais, o que resulta não só em aumento de manipulação de informações e compartilhamento de falsas e duvidosas fontes de notícias, mas também o aumento de vidas impactadas por essa descredibilização da realidade.
Países como a Nova Zelândia e Israel investiram em ciência e tecnologia para o combater da Covid-19. A consequência? Os dois países tiveram maior e mais rápido controle da pandemia. Por outro lado, no Brasil, houve cortes de investimentos e ações voltadas à ciência e pesquisa, o que contribuiu para que o país se mantivesse na posição dos piores rankings em relação ao enfrentamento geral da pandemia. (BBC, 2021). Esse posicionamento por parte do governo é reflexo da desvalorização da ciência e da manutenção do analfabetismo científico do Brasil (ÉPOCA, 2014).
Dessa forma, é importante saber identificar quais notícias são verdadeiras, além de ter a postura desconfortável e até angustiante de não saber de tudo e conceber que até o que se sabe pode não ser equivalente à realidade objetiva. Para isso, sugerimos a adoção de alguns passos: 1- Questione a informação – comece a questionar as informações, considerando fonte e argumento da notícia; 2- É verdade? – para ser ciência, precisa ter evidências: procure na notícia comprovações e evidências científicas; 3- Pesquise – existem sites confiáveis que possibilitam a verificação da informação ser falsa ou não, acesse, por exemplo: https://www.aosfatos.org/ e/ou https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/. 4 – Atente-se: tenha em mente que a ignorância de um povo atende à objetivos econômicos, sociais e políticos que pode ser na contramão do bem-viver das pessoas e coletividades. 5 – Lembre-se: não estamos prontos, somos falhos, erramos, construímos e descontruímos realidades; nada é permanente.
Referências:
BBC NEWS BRASIL. Brasil é último em ranking que analisa reação de países à covid-19. BBC NEWS BRASIL, 30 DE JANEIRO DE 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55870630> Acesso em: 10 de setembro de 2021.
BUNCHAFT, Guenia; KRUGER, Helmuth. Credulidade e efeito Barnum ou Forer. Temas psicol., Ribeirão Preto , v. 18, n. 2, p. 469-479, 2010 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413389X2010000200020&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 10 set. 2021.
CARAVALHO, David. Por que você não deveria argumentar com radicais – o efeito backfire. Disponível em:<https://www.blogs.unicamp.br/covid-19/por-que-voce-nao-deveria-argumetnar-com-radicais-o-efeito-backfire/>. Acesso em 12 set 2021.
CAPPI, Lis. Sete países que “tratam bem a questão da covid” para o presidente conhecer. Correio Braziliense, Distrito Federal, 18 de março de 2021. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2021/03/4912706-sete-paises-que-tratam-bem-a-questao-da-covid-para-o-presidente-conhecer.html> Acesso em: 10 de setembro de 2021.
FABER, J. Viés cognitivo: quando ser racional não é o bastante. Revista Ciências
em Saúde, v. 4, n. 4. Disponível em:< http://186.225.220.186:7474/ojs/index.php/rcsfmit_zero/article/view/536/351>. Acesso em 10 set 2021.
GUIMARÃES, Camila. Um país de analfabetos científicos: Uma pesquisa nacional mostra que 79% dos brasileiros não conseguem entender um manual de instrução para usar aparelhos domésticos. Época, 2014. Disponível:< https://epoca.oglobo.globo.com/vida/noticia/2014/09/um-pais-de-banalfabetos-cientificosb.html>. Acesso em 12 set 2021.
MIGUEL, L. R.. Conservar e amar o básico: um relato sobre a “inutilidade” fundamental da universidade. Em Construção, p.9 , 2017.
PILATI, R. Ciência e pseudociência: por que acreditamos naquilo em que
queremos acreditar. São Paulo: Contexto, 2018.
PINTO, M.; SBICCA, A. CASONATO, L. Uma análise do fenômeno ‘fake news’ com base na Economia Comportamental. Econ. e Desenv. Santa Maria, v. 32, e14 , 2020. Disponível em:< https://periodicos.ufsm.br/eed/article/view/49203/pdf>. Acesso em 12 set 2021.
SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo: Companhia de bolso, 2006.