Hoje pela manhã, chegando ao trabalho, passei por um acidente de trânsito. Um carro atravessado na avenida, uma moto caída e um corpo que jazia sob um lençol branco. Cheguei para trabalhar tenso, preocupado (“será alguém conhecido?”), curioso, sim, sobre como se dera o acidente e também muito pensativo: quem era aquela pessoa? como estaria sua família? teria deixado filhos em casa? ou pais que chorariam a morte de um filho que partira cedo demais? teria essa pessoa sentido a morte se aproximar? sofrera, chorara, antes de morrer?
Fiquei meio que inundado destes sentimentos. Breve, muito rapidamente, vi pela internet detalhes sobre o acidente. Soube que era uma jovem de vinte e cinco anos e mais alguns detalhes de como tudo aconteceu. E já foi o suficiente para ficar mais e mais incomodado pensando em sua família, seus pais, seus irmãos, enfim, quem ficou e que por ela irá sofrer.
Logo apareceu, em um site de notícias, uma imagem do seu corpo no chão, ainda sem o lençol que a cobriria logo depois, que mostrava claramente as marcas da tragédia. Sangue e a brutalidade do acontecido estavam ali, para quem quisesse ver. Logo apareceu ali no Facebook a imagem original da qual o site de apoderara.
A partir dali aquela pessoa e sua tragédia, bem como a tristeza de toda a sua família, se transformou em uma imagem que parecia merecedora de ser curtida, compartilhada, comentada. E assim o foi. Em poucos minutos foram mais de duzentos compartilhamentos, um sem número de curtidas e centenas de comentários que iam se avolumando, tanto em quantidade quanto em insensibilidade à dor do outro.
Aos comentários que buscavam oferecer algum consolo (como se uma mãe ou um pai, em sua dor, fossem olhar cada foto de sua filha morta no chão para ler o que haviam escrito sobre ela buscando obter alguma forma de conforto) se misturavam centenas de outros que, detentores do saber, atribuíam a responsabilidade pelo acontecido ora à jovem, ora ao motorista do outro veículo. Como se já não bastasse a dor de quem perdeu um parente e o sentimento de culpa que, independente do que aconteceu, já devia pesar sobre a cabeça do outro motorista.
Palavras como “cabeça estourada”, “muita imprudência”, “que tragédia”, “esse infeliz tá solto e vivo”. Alguns poucos entenderam que a crueldade não estava somente no acidente em si, mas na insensibilidade de quem compartilhava uma imagem tão triste: “Isso não é foto de postar no face. Imagina a família dela vendo isso”; “lamentável……mas a foto é muito forte para os parentes e amigos”.
Em que momento a ânsia de sermos divulgadores de uma imagem tão brutal, nos impede de pensar que do outro lado pode estar um parente, um amigo, enfim, alguém muito próximo que acabará tendo sua dor ampliada pela nossa insensibilidade?
Em que momento não conseguimos nos colocar no lugar do outro para imaginar o quanto nos seria dolorido ver nosso filho, nosso irmão, nosso amigo, em uma imagem terrível e brutal compartilhada por pessoas a quem esta dor, na maioria das vezes, nem diz respeito?
É! Em que momento nos tornamos tão insensíveis à dor do outro?
Nota:
Texto escrito no dia 16 de outubro, quando imagens fortes de um acidente em Palmas, Tocantins, tomaram conta da rede social Facebook e de alguns portais de notícia. Após a grande repercussão da indignação das pessoas com essa atitude as imagens foram removidas dos sites de notícias e de vários perfis da rede social. O autor julgou o tema pertinente para ser registrado no (En)Cena.