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Entre o social e o biológico ou da miséria à doença

O Brasil caminha definitivamente pela estrada gloriosa do crescimento, rumo a um ideal norte-americano de grande país. Não faltam pistas que nos indiquem isso: o crescimento do PIB, o número de vagas no mercado de trabalho, o volume das exportações, a tão falada estabilidade da economia (apesar do velho fantasma da inflação) e etc. etc.

De todos os fatos que aproximam o Brasil das nações do – agora não tão distante – primeiro mundo, o mais inglório foi o que ocorreu recentemente em Realengo, bairro da periferia da cidade do Rio de Janeiro.

Como foi ampla e espetacularmente divulgado pela mídia, Wellington Menezes, de 23 anos, entrou armado em uma escola pública carioca e disparou contra crianças e adolescentes, matando uns quantos, ferindo outros e inaugurando em terras tupiniquins uma forma de assassinato antes só vista pelos brasileiros, através de vagas notícias oriundas de distantes paragens.

Muito se poderia falar a respeito de fato tão triste, trágico e lamentável. Contudo, mesmo arriscando ser tragado pela corrente do caudaloso rio da maioria, gostaria de me concentrar em um outro conjunto de fatos, ocorrido após o tiroteio e decorrente dele, protagonizado por “especialistas do comportamento humano”, que vieram acudir a sociedade,  perplexa diante do horror e do inominável, com opiniões abalizadas, seguras, centradas, enfim, científicas.

Como é reconfortante que, diante do inexplicável, mesmo quando a humanidade em nós se manifesta da forma mais grotesca e idiossincrática, haja a ciência e seus paladinos para fazerem o mundo voltar a ser aquele velho mundo acolhedor de todo dia.

Chamados a opinar, diversos profissionais de saúde mental, oriundos das mais variadas áreas, referiram-se alternadamente ao bullying (novo produto, recém lançado no dinâmico mercado das doenças), à psicopatia (velho produto desse mesmo mercado, agora apresentado na embalagem nova do transtorno de personalidade anti-social), à esquizofrenia, ao transtorno bipolar e a outros mais, a depender tanto da formação de quem opinava, quanto da demanda – também mercadológica – daqueles que ouviam.

É interessante a forma com que profissionais da saúde, alguns deles em claro gozo de seu furtivo momento televisivo, debruçam-se sobre os mais variados e complexos temas, mesmo que tais temas sejam de teor eminentemente social.Claro está que não há nada de novo nesse fenômeno, já que o interesse dos saberes médicos (aqui incluídos: medicina, psicologia, nutrição, terapia ocupacional, fisioterapia etc.) por temas sociais é coisa de algumas centenas de anos.

A partir dos séculos XVII e XVIII, quando do acelerado processo de urbanização ocorrido na Europa, os profissionais de saúde (na época, representados quase que exclusivamente pelos médicos) passaram a ser chamados a intervir na organização do espaço da cidade, para gáudio e glória do capitalismo, ainda em seus vacilantes primeiros passos de bebê. Tal processo – conhecido como medicalização – cada dia mais vigoroso e presente, fez dos saberes médicos disciplinas eminentemente sociais.

Diversas e profundas são as implicações desse processo no nosso dia-a-dia. Uma delas é o imenso prestígio que a medicina alcançou nos últimos duzentos anos. De funcionário subalterno, o médico alcançou, hoje, o estatuto de detentor absoluto da verdade sobre os mistérios da existência humana, e não apenas no que toca a dimensão biológica do homem. A reboque, ganharam importância todas as disciplinas que à medicina se relacionam e que acima foram mencionadas.

Tal prestígio não explica apenas aquelas duas horas de espera que temos de tolerar antes de cada consulta médica. Hoje, os saberes médicos opinam e normatizam cada momento de nossas vidas, por mais banais que tais momentos possam parecer, digerindo-os a partir de uma lógica que divide a vida entre o que seria normal e aquilo tido como doença.

Segundo tais saberes, há uma forma correta de nascer, uma maneira adequada de morrer, uma idade certa para ter filhos, uma forma adequada de educá-los, um jeito saudável de se alimentar, de dormir, de acordar, de se exercitar, de fazer sexo, de se banhar, de sofrer; enfim, há um conjunto de prescrições, fora das quais estaríamos condenados a uma vida de doenças físicas, mazelas psíquicas e males sociais.

Negar os aspectos biológicos do homem, mesmo quando visto a partir de sua dimensão social, seria tão temerário e reducionista quanto negar os aspectos sociais do homem, ainda que tomado em sua dimensão biológica. A questão não se rende a uma análise dualista, mas multilógica e não excludente. Contudo, é importante que se faça notar que o processo de medicalização, intenso como ele tem se configurado nos últimos anos, nos traz em relação ao homem – um objeto complexo, por definição -a falsa impressão de simplicidade. É exatamente isso o que ocorre quando se tenta explicar a ação de Wellington Menezes, na escola de Realengo.

Explicar o que ocorreu naquela triste manhã de 7 de abril a partir de um diagnóstico médico ou psicológico – seja de esquizofrenia, de psicopatia, bullying ou algo que os valha – é ficarmos cegos para diversos outros aspectos de cunho social, econômico, cultural e etc. que, no geral, não são jamais abordados pelos profissionais da saúde que, chamados a expressar suas opiniões sobre fatos de teor semelhante, o fazem aos quatros ventos e nos mais variados meios de comunicação.

Desse fato, duas hipóteses podem ser formuladas. A primeira é a de que estamos diante de uma epidemia de profissionais acríticos, chinfrins e formados na lógica cega do superespecialista (aquele que sabe quase tudo a respeito de quase nada); a segunda hipótese seria a de que à mídia só interessa aquelas explicações mais fáceis, superficiais e que acenam – para alívio de todos e felicidade geral – com a solução rápida e eficaz de um tratamento médico ou psicológico adequados. Afinal, estão aí os profissionais a oferecerem seus serviços e a indústria farmacêutica a oferecer seus remédios. É provável que as duas hipóteses sejam válidas.

Explicar o que ocorreu em Realengo a partir da lógica da doença é desconsiderar o fato de que Wellington vivia em um estado violento, de um país violento; é não levar em conta que ele morava nas cercanias da Baixada Fluminense, uma das regiões do mundo de maior índice de homicídios; é esquecer que a Baixada Fluminense abriga hospitais cujos cirurgiões são mundialmente reconhecidos por sua experiência no tratamento de traumas por armas de fogo; é estar cego para a falha dos órgãos públicos que, por inércia e ineficiência, permitiram que, com facilidade, Wellington comprasse as armas usadas na ocasião; é desconsiderar a possibilidade de que aquele rapaz, caso tenha realmente surtado e caso vivesse em outra realidade, ao invés de balas, viesse a atirar flores.

Explicar ato tão dramático a partir pura e simplesmente de um diagnóstico é reduzir perigosamente o ser humano a um aglomerado de células ou a um conjunto de esquemas psicológicos e comportamentais. Diagnosticar Wellington é, enfim, esquecer-se de Wellington.

Pelo menos até que apareça outro…