Consumo, compreendido em seu sentido mais simples, é condição sine qua non para a manutenção da vida. Pensar em consumo nestes termos leva diretamente a ideia de satisfação das necessidades, principalmente necessidades básicas, como segurança, alimentação e moradia. A partir da mínima garantia destas, surgem as necessidades sociais e de estima, chegando até a realização pessoal. De fato, para diferentes pensadores de diversas épocas e epistemologias, a teleologia humana, o grande motivo pelo qual estamos todos aqui reunidos vivendo nossas vidas, é a autorealização, ou a eudaimonia, conhecida hoje como felicidade.
Agora proponho um exercício mental. Imagine uma sociedade simples, que seria um tipo ideal de um local com a vida pouco sofisticada, uma vila no interior, um local ermo e ainda pouco tocado pela civilização moderna. Nessas condições, enquanto as necessidades básicas poderiam ser adquiridas de maneira privada ou providas pelo Estado (de acordo com o pressuposto ideológico do regime político vigente), as necessidades sociais, amizade, autoestima e autorealização dependeriam quase inteiramente do indivíduo, de sua própria força que vem da capacidade de relacionar-se de maneira satisfatória consigo mesmo e com o meio no qual se encontra inserido. Neste espaço não se espera encontrar uma grande oferta de socialização mercantilizada, pronta para ser consumida na forma de serviços. Vivendo assim, para sermos felizes dependeríamos muito mais de nossa racionalidade substantiva, da busca pelo próprio centro, do “torna-te quem tu és” Nietzschiano, do que da racionalidade instrumental voltada para cálculos meio-fim. Seria uma sociedade que tem na autorealização um caminho de busca interior de sentido para a vida, normalmente atrelado a um ideal de simplicidade.
Até aqui tudo bem. Mas e quanto às sociedades urbanas, racionais, científicas e complexas? Continuando a análise pelo mesmo caminho, rapidamente se torna evidente que muita coisa mudou. O mercado, esta entidade imanente e amoral que tende ao equilíbrio pelas livres trocas, é a mediação para a realização de praticamente qualquer necessidade ou desejo. Em todas as esferas da vontade surgem produtos e serviços correspondentes. De certa forma, a própria ideia de necessidade e desejo tornou-se um produto, obedecendo a lógica da obsolescência e da substituição. A regra é buscar a velocidade ótima do fluxo de mercadorias de maneira que o velho seja abandonado pelo novo o mais rápido possível. As estratégias utilizadas para este fim multiplicam-se como ideologias do consumo e do progresso caminhando de mãos dadas, escondidas como não ideologias e atendendo pelo nome geral de cultura. Vivemos imersos em uma cultura do consumo na qual a lógica da obsolescência é um imperativo. Produtos e pessoas tornam-se obsoletos, sendo manipulados a partir do desejo programado pela propaganda.
Nesta sociedade global do consumo programado, o mercado é do tamanho do planeta. Ninguém consegue impor limites à marcha do desenvolvimento que parece ter assumido vontade própria. Tudo é transformado em mercadorias. Desde relações sociais (facebook, twitter, sites de encontros), passando por estima (livros de autoajuda, roupas), até autorealização (automóveis, imóveis). Toda e qualquer necessidade é codificada na forma de produtos com o apoio do marketing. Consumimos signos acreditando na promessa de que eles podem trazer felicidade, entretanto, a materialidade não nos satisfaz, pois na prática um produto nunca estará à altura de uma simbologia exagerada para vender. Até mesmo estilos de vida são fabricados e comercializados no Shopping Center. Os códigos de vestimenta, o certo e o errado das revistas e das colunas de jornal, a televisão, as multimídias, tentam educar a manada de consumidores, direcionando o fluxo de investimento da próxima moda. “Eu sou aquilo que consumo”. A identidade de consumidor grudou-se a ideia de cidadania (compra consciente) e de família (basta ver a quantidade de propagandas com crianças). Antes de sermos pais, professores, pesquisadores, economistas, alunos, cidadãos e indivíduos, somos consumidores, portadores de signos de diferenciação e aproximação.
As consequências desta transformação histórica, resultado do crescimento populacional e do processo contínuo de ampliação da acumulação do capital, são inúmeras. Focaremos aqui nas que consideramos ser as mais perversas, a exclusão, o endividamento e a falta de sentido para a vida.
A exclusão é uma consequência social, entendida a partir da estrutura de classes. Quanto mais riqueza material produz e circula em uma determinada sociedade, mais marcantes são os traços de pobreza que levam a exclusão. Quanto mais pessoas tornam-se ávidos e peritos consumidores, mais fora e sem possibilidade de circulação ficam os que portam os signos da miséria. A maioria dos espaços da cidade são hoje espaços privados, restritos apenas para consumidores aptos.
O endividamento é outra face maligna do consumismo. Chegamos a um ponto no qual o endividamento das famílias brasileiras corresponde a cerca de 40% da renda anual da população. Segundo os dados de uma pesquisa sobre inadimplência da Confederação Nacional do Comércio, mais de 70% dos respondentes apontam o cartão de crédito como o seu principal tipo de dívida, permitindo inferir que o aumento do endividamento dos brasileiros tem relação com o aumento no consumo de bens supérfluos e não-duráveis. A pergunta é: quem vai pagar essa conta? A resposta: todos (claro, quem tem menos perde mais). Os movimentos tendenciais do capitalismo já ensinaram que uma nação endividada, crescendo financiada pela abundância de crédito propiciada pelo momento internacional que favorece sua posição como receptor do capital global, cedo ou tarde quebrará. A Europa e os EUA, por vias diferentes, chegaram ao mesmo resultado. Quem está pagando a conta? Todos nós, inclusive os países periféricos que financiam o resgate europeu a partir da extração e remessa de juros do sistema bancário, da exploração do trabalho e do extrativismo de matérias-primas, como o cobiçado ouro negro do petróleo. Esta é uma perspectiva que se desdobra distante, é assunto para outro ensaio, por hora basta sabermos que temos uma conta a ser paga e que ela está continuamente crescendo.
Qual o resultado de tudo isso? Para onde estamos indo enquanto civilização? Se realmente existimos para ser felizes e realizados, foi justamente aí que ocorreu o maior de todos os “golpes” da modernidade, um golpe histórico sem autoria determinada. Para uma completa e fluída ascensão da sociedade do consumo programado foi necessário reprogramar a noção de felicidade. Hoje, não é muito difícil perceber que ser feliz está diretamente atrelado á posse de bens materiais e a uma ideia de sucesso profissional. A ideologia do consumismo criou a falsa noção de que a felicidade pode ser atingida a partir da posse de bens. Muitos perseguem esta meta como cachorros de corrida tentando alcançar o coelho elétrico que sempre se distancia. A racionalidade substantiva, capaz de acessar o eu, foi impregnada pelo princípio da eficiência, sendo cada vez mais difícil separá-la da racionalidade instrumental. Assim, nos tornamos seres de essência calculista orientados pela máxima maquiavélica dos fins que justificam os meios. Como é possível ser mentalmente saudável e realizado estando preso a esta racionalidade artificial? É necessário e urgente desvelar e minar estas formas de pensar que nos limitam enquanto seres humanos, seja pela crítica, pela educação ou pela cultura (como manifestação popular). Quando nos tornarmos consumidores equilibrados atingiremos um grau maior de emancipação, dando um grande passo rumo a uma sociedade mais justa e livre.