Leituras de Bauman – A utopia da segurança com liberdade

“O homem é um cadáver adiado”
Fernando Pessoa

O Iluminismo marcou uma era em que as sociedades transferiram da igreja (e seu viés transcendental) para o Estado algumas das mais almejadas demandas que sempre perturbaram os povos europeus. Dentre elas, destacam-se a ideia de segurança e de liberdade. Separadamente, elas compõem o bojo de uma receita que começou a ser preparada há 500 anos e que, ainda hoje, divide a opinião de estudiosos.

O tema já havia sido levantado pelos contratualistas, a exemplo de Hobbes e Locke, para quem haveria de existir uma instância acima dos interesses particulares, que pudesse garantir o direito de todos, sendo que algumas das principais bandeiras defendidas pelo movimento são a liberdade e a defesa da propriedade privada. Mas há um preço por isso. Como diria Rousseau, para ter segurança o povo renuncia “à sua vontade individual para garantir a realização da vontade geral”.

No entanto, com o passar dos anos, com a consolidação da chamada Indústria Cultural e com o avanço do marketing e da publicidade e propaganda, dentre outras coisas, como pontua o francês Gui Debord em “A Sociedade do Espetáculo”, houve a construção de uma subjetividade em que liberdade e segurança deixaram de ser logicamente incongruentes para tornarem-se irmãs siamesas.  Elas foram apresentadas como uma espécie de antídoto para um problema recorrente para o homem, em todos os tempos: o medo oriundo da contingência imposta pela vida, e no caso de parte dos contratualistas, o medo dos outros homens. Isto é o que teria movido a sociedade em busca de horizontes possíveis (uma espécie de “vir a ser da história”). As projeções mais eficazes estão no âmbito das utopias. O que não deixa de ser curioso, pois se veem nestes movimentos muitas das mesmas receitas que são utilizadas nas religiões.

Em seu recente livro “Cegueira Moral” (Zahar, 2014), o sociólogo polonês Zigmund Bauman diz que o medo sempre existiu e que a sociedade ainda está muito distante de superá-lo. Ele aponta três aspectos que alimentam sua tese: a falta de previsibilidade sobre os fenômenos naturais e sobre a nossa própria vida, apesar dos avanços da ciência; a impotência diante da impossibilidade de se evitar um infortúnio; e, por último, a “humilhação” decorrente da constatação destas dinâmicas.

Numa espécie de “negação” da constante afronta a que são submetidas, as pessoas passam o tempo inteiro, segundo Bauman, procurando cimentar uma vida com segurança. Mas o paradoxo é que elas não abrem mão da liberdade. Como exposto acima, querem ter segurança com liberdade. O austríaco considera isso um contrassenso, já que é improvável que alguém possa “atingir o conhecimento pleno do que está por vir”. Bauman também lança dúvidas sobre as ferramentas preventivas utilizadas pelas pessoas e organizações, considerando que dificilmente elas podem ser dadas como totalmente seguras. Este é outro debate que envolve cientistas e filósofos, notadamente nas “trincheiras” do Realismo e do Antirrealismo, assunto que certamente exigiria novo artigo.

De qualquer forma, como destaca Bauman, não há como escapar de que “certo grau de ignorância e importância tende a acompanhar os seres humanos em todos os seus empreendimentos”. Ignorância sobre o que lhe reserva o futuro, e impotência diante de um eventual desfecho inesperado. Contra este argumento, há quem cite os modernos planos de contingência (os famosos “planos B”), para que se evite a instalação do caos diante de circunstâncias aparentemente danosas. No entanto, Bauman diz que estas ações são paliativas e normalmente atendem aos interesses gerais, dificilmente sendo vislumbradas para questões mais pessoais, individuais e focalizadas, que acometem diariamente centenas de milhares de pessoas.

Fonte: frasesdaborboleta.blogspot.com

A própria criação da utopia da “segurança com liberdade” (já que, como foi exposto, para ter segurança, é necessário ceder um pouco da liberdade) é uma enorme fonte de mal-estar. Para Bauman, as pessoas passam boa parte de suas vidas temendo “o sofrimento que pode advir das ameaças permanentes pairando sobre nosso bem-estar”. Para tentar “bloquear” estes perigos iminentes, as pessoas se concentram em tentar manter o controle sobre três grandes variáveis que marcam a existência humana, a saber: “o poder da natureza, a fragilidade dos nossos corpos e as relações com os outros seres humanos” (sobre este último, lembremos-nos do que motivou o Contrato Social de que falam os contratualistas).

O estado e a Sociedade, portanto, agora seriam os guardiões da ordem, da segurança e da liberdade (o que antes era conferido às religiões). No entanto, diz Bauman, esta “guerra declarada ao desconforto humano” já começa com baixas, uma vez que, no fundo, haverá sempre um conflito entre a “liberdade de agir de acordo com as suas compulsões, inclinações, impulsos e desejos”, de um lado, e as “restrições impostas por motivos de segurança, altamente necessárias para uma vida satisfatória”, de outro lado.

Ao citar Freud, Bauman diz que os desconfortos e aflições surgem quando se acredita generalizadamente nesta receita da segurança com liberdade, ou quando “se cede muito da liberdade [ou vice e versa] em troca de uma melhoria parcial da segurança”. Neste ínterim, como também já falou Nietzsche, “a liberdade truncada e restrita é a principal baixa do ‘processo civilizador’, a maior e mais generalizada insatisfação, até mesmo endêmica”. No entanto, tanto Bauman quanto o próprio Freud dizem que é inevitável a permuta entre liberdade e segurança.

De acordo com o sociólogo austríaco,

“em nossa sociedade altamente individualizada, em que se presume que cada indivíduo seja responsável por seu próprio destino na vida, essas condições implicam a inadequação do sofredor para tarefas que outras pessoas, mais exitosas, parecem desempenhar graças à maior capacidade e maior esforço” (BAUMAN, 2014).

Ou seja, além da falsa impressão de que ao conquistar segurança (no emprego, ao passar num concurso público, por exemplo) já se ganha o “kit completo”, com liberdade e tudo, em dado momento a pessoa é instada a perceber o progresso histórico à sua volta e, logo, o [progresso] individual, que mais “parece lembrar um pêndulo do que uma linha reta”. Assim, quando se tem liberdade, muitos são os que se percebem com déficit de “segurança existencial”; quando se tem segurança, a preocupação é com as “amarras” que tal segurança impõe para o proponente alinhado às diretivas estabelecidas. Desta forma, presume-se, do que adianta ter um emprego com estabilidade se, por outro lado, tal ocupação é marcada por processos repetitivos e pela falta de estímulo? E o que fazer, também, com uma suposta (e assustadora) possibilidade de “liberdade total” (se é que existe)? De fato, a questão parece ser indissolúvel.

Fonte: www.gettyimages.com (Reprodução Web)

No final das contas, como bem pontua Bauman, e diante de uma crescente onda de patologias psicológicas – notadamente a depressão, a mais comum delas –, é necessário lidar com o que ele chama de “mãe de todos os medos”, ou o “medo dos medos” referente à nossa condição de finitude, o medo da morte. Diante deste que é o maior dos infortúnios, “da brevidade inegociável do tempo”, diz Bauman, uma das melhores notícias vem da “necessidade de se preencher este abismo” pela transformação dos seres humanos em “criaturas da cultura”. Diferente dos antigos gregos, que eram imortalizados por sua bravura, os homens modernos podem ser eternizados pelas produções culturais que deixarem. É um convite para a “abertura” para o outro, por mais que determinados processos sejam individuais… Numa demonstração de que até mesmo a liberdade que advém da originalidade, em alguma medida, está atrelada às convicções gerais proporcionadas pela “frente” que oferece segurança.

Por fim, Bauman parece apontar para uma “justa medida”, evitando-se os extremos e as receitas prontas. A vida, então, é vista como “dinâmica dialogista”, com altos e baixos. Reconhecer esta condição é o primeiro passo para diminuir as desconfianças e, com isso, enfraquecer esta condição de alerta que parece acometer boa parte das pessoas.

 

Referências:

DEBORD, Guy.  A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto Editora, 1997.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém. Petrópolis: Vozes, 2008.

BAUMAN, Zigmund. Cegueira Moral – A perda da sensibilidade na Modernidade Líquida. São Paulo: Zahar, 2014.

COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011.

O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.