A vida, meu amor, é uma grande
sedução onde tudo o que existe se seduz.
Aquele quarto que estava deserto e por
isso primariamente vivo.
Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido.
Clarice Lispector
O desafio para retratar a Luxúria comove os sentidos e provoca sede na alma do escritor. Escrever se transforma em arte de movimentos sinuosos e dotados de tanta sensibilidade que impulsionam os hormônios em direção da corrente sanguínea em busca do proibido prazer alcançável, ilimitável, mas, nem sempre, perdoável.
Nesse sentido, arquejam as doses extras de desejo para descrever esse pecado capital, tão intempestivo e avassalador, que não se limita a citações absortas nos moldes convencionais da descrição e da razão. Propõe-se, assim, que sejam esquecidas as regras e as restrições cotidianas.
Para uma compreensão mais efetiva, sugere-se o cenário que será palco para a representação das tentações mais íntimas. Imagine-se em um quarto com cortinas púrpuras e decoração escarlate. Sinta o sussurrar do vento que penetra pelo ambiente e desarruma os lençóis de seda da cama suntuosa. Sinta o gosto do vinho tinto que está servido na taça do mais fino cristal sobre a mesa. Deixe-se ser tocado pela maciez das pétalas vermelhas das rosas que decoram o chão. Permita-se inalar o aroma das paixões proibidas que vaga no ar.
Autorize-se a vivenciar o excesso dos prazeres desse texto. Feche os olhos e sinta prazer em ser invadido pelas palavras que estão vestidas com o vermelho dos arroubos das paixões que desfilarão pelas folhas do papel com a boca sedenta pelo prazer desenfreado e lascivo em descrever a Luxúria. Aceite o desafio de se aproximar da Luxúria.
Definir a Luxúria remete, obrigatoriamente, à noção de pecado. Mas, afinal, o que é PECADO?
O pecado é concebido como uma disfunção da natureza humana. Assevera-se que é inerente ao homem. Porém, é relevante informar que, somente com a Súmula Teológica de São Tomás de Aquino, séc. XII, os sete pecados capitais, Gula, Luxúria, Avareza, Ira, Soberba (Vaidade),Preguiça e Inveja, foram oficializados pela Igreja Católica. Etimologicamente, pecado vem de caput (cabeça). Logo os pecados capitais são as cabeças dos demais pecados.
A Luxúria, na conotação sexual, opõe-se ao sexo para propagação da espécie, visto que satisfaz somente suas necessidades. Por isso, possui status relevante e inquisidor no meio pecaminoso, pois representa o prazer pelo excesso, compulsão por algo ou alguma coisa. Ouso afirmar que substancia o mais carnal dos pecados. E, partindo do pressuposto de que a antítese ALMA x CARNE consiste em recorrentes temáticas nas paradoxais reflexões humanas, compreende-se que a Luxúria possui idade que remota à essência das contradições humanas.
Destarte, torna-se notório a distinção entre Sexo e Amor. Para fundamentar essa distinção remete-se aos preceitos preconizados na Bíblia.
Por isso digo: Vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne.
Gálatas 5:16
Cada um, porém, é tentado pelo próprio mau desejo, sendo por este arrastado e seduzido. Então esse desejo, tendo concebido, dá à luz o pecado, e o pecado, após ser consumado, gera a morte.
Tiago 1:14-15
Compreende-se que o Amor envolve, enaltece, valoriza e se compromete com a pessoa amada. Logo, o sentido de Amar reside no outro. Contudo, a Luxúria é egoísta, somente seus sentimentos e ambições são importantes. Por ensimesmar-se, não admite compromissos. Sua subjetividade, sentimentalismo egocêntrico a tornam autossuficiente. Talvez, por isso tão temida e execrada. Afinal, a Luxúria é guerreira atroz e tirana que enfrenta nas lutas da existência seu maior rival: o Amor puro, casto e fiel. Portanto, Luxúria e Castidade são opostos de um ser, como as duas faces de uma moeda. Admita-se, cada face com seu encanto peculiar. Cabe a cada um escolher a face que mais lhe seduz.
A Luxúria não se esconde, ela tem iniciativa. Por isso, esse pecado capital, às vezes, aparece acompanhado da Gula. Segundo São Tomás de Aquino, a Luxúria remete aos prazeres sensuais. Ele ressalta que tanto a comida quanto a relação sexual tem como finalidade a conservação da vida, por isso o não atendimento a essa finalidade implica PECADO.
Embora tão contundente e desafiadora dos preceitos divinos, a Luxúria, desde o pecado original, sempre protagonizou ações dignas de serem descritas. Remetamo-nos à era das Cavernas. Quem incitava o sexo instintivo e infielmente descompromissado entre os primitivos? A Luxúria!
Seguindo o curso da história, a razão destes comportamentos tão distanciados da intimidade do AMOR, condicionou a compulsão pelo sexo desmedido, desregrado onde se busca somente a exaustão pelo prazer. E, em se tratando de prazer imensurável, citam-se as festas proporcionadas pelo Deus grego Baco, o Deus do Vinho. Esses bacanais de prazer eram realizados em homenagem à Luxúria.
A Luxúria não segue doutrinas, ela define e nunca acata normas consensuais. Por isso, manifesta nos seres, o desejo desmedido e obcecado pelo prazer. Devido à tamanha empáfia, a Luxúria sempre foi laudada em versos e prosa. Desde Safo (630-560 a.c.), poetisa da Ilha de Lesbos cujos poemas sobre o Amor sexualmente emocional e platônico entre elas e outras mulheres que se propagaram no decorrer dos séculos.
A Luxúria é clássica quando se vê retratada na obra “Os Lusíadas” de Camões, no episódio intitulado “Ilha dos Amores”. Nessa ilha, povoada de ninfas e presente da Deusa Vênus aos portugueses, Tétis, a filha de Nereu, encontrou na Luxúria sua companheira inseparável para o exercício de seus atributos inigualáveis na arte da sedução.
A temática relativa a Luxúria encanta também a contemporaneidade. Para ratificar essa afirmação, contempla-se a obra ‘Lucíola” de José de Alencar. Afinal, em pleno romantismo na literatura, a personagem Lúcia, cortesã sedutora e caprichosa, alude a Lúcifer, dado o fascínio e leviandade dos seus encantamentos no ofício de cortesã mais cobiçada e desejada do Rio de Janeiro. Ou seja, a Luxúria está presente, inclusive, nas obras idealistas do Romantismo.
Cumpre citar que a Luxúria enquanto desejo obsessivo possui relevante destaque também nos contos da literatura infantil. Afinal, nas compulsões desmedidas pela busca da beleza eterna e do poder, as bruxas dos contos de fadas são motivadas pelos devaneios da Luxúria.
Se a Luxúria invade todos os tempos e espaços, ela deleita-se na modernidade. Fato comprovado nas obras de Nelson Rodrigues, cujo enfoque central são as motivações que a Luxúria possibilita. Dessa forma, apimentando de forma maliciosa o enredo de suas narrativas. Como exemplo, cita-se a obra “O Beijo no Asfalto”. Pois quando Aprígio mata Arandir, seu grande amor, com um tiro. Com certeza, a Luxúria das paixões impossíveis o incitou e ajudou a puxar o gatilho.
A Luxúria serve de inspiração para todas as manifestações textuais. Asseveração comprovada na observação dos quadrinhos de Carlos Zéfiro, considerados “catecismos” para descrição da Luxúria.
Então, questiona-se o porquê da Luxúria embora tão proibida seja tão sedutora e presente no nosso cotidiano?
Talvez a resposta consista no fato de que a Luxúria não é somente maldita, mas metódica, séria, imprevisível e destemida. Como já defendia São Tomás de Aquino, o sexo não é pecado desde que tenha por fim a procriação. Sendo assim, a Luxúria que reside, também e de sobremaneira, no desejo sexual obsessivo, encontra nessa necessidade humana, ambiente propício para sua morada eterna.
Seria essa a razão da sua contínua tentação?
Freud asseverou acerca das zonas erógenas oral, anal, genital do desenvolvimento do sujeito. Sendo a Luxúria sábia não duvide se ela possuir um mapeamento dessas particularidades intrínsecas ao comportamento humano.
Diante do exposto, a cautela é fundamental para se lidar com a Luxúria. Segundo Irvin D. Yalom, em sua obra “Quando Nietzsche Chorou”, o personagem de Nietzsche não condena o sexo, mas adverte que o sexo desmedido torna-se dominador, pois corrompe o Amor, tornando-o indesejável. Nesse sentido, a Luxúria condiciona o isolamento do ser. Mas como isso é possível? Muito simples, a Luxúria escraviza. Ela invade a alma, devorando-nos em um processo de alienação do mundo real.
Na finalização dessa deliciosa e tentadora abordagem sobre a Luxúria, cabe a reflexão “Se a Luxúria destrói padrões do cotidiano, esvazia-nos pela obsessão, por que, mesmo assim, ela é objeto contínuo no despertar de nossos desejos?”
O demônio Asmodeus, capeta da Luxúria, talvez tenha a resposta. Então, como não dialogamos , ouso afirmar que a sedução pela Luxúria reside no inegável fascínio humano pelo alcance do gozo do prazer absoluto. E nessa busca incessante, deparamo-nos com o ortodoxo enigma da vida “Qual o limite para o prazer? A Luxúria tem a resposta: “Nenhum”.
Cabe a cada um de nós decidir se acatamos ou não essa resposta. Afinal, a Luxúria seduz, domina, impõe e escraviza, mas nós decidimos o limite de nossas ações. Contudo, saiba que a Luxúria estará sempre à espreita aguardando pela sua curiosidade de conhecê-la mais intimamente. Caso isso venha a acontecer, ela chegará nas asas da liberdade em um convite atraente e leviano para o deleite dos desejos proibidos e mais profundos que não ousamos sonhar em nossa vã filosofia.
O convite está feito. A Luxúria aguarda, na sua calma sedutora, sua decisão.
Citações
Bíblia sagrada.
Quando Nietzche chorou. Irvin D. Yalom
A castidade impossível a Luxúria Maldita. Luiz Felipe Ponde.
Os Lusíadas. Luís Vaz de Camões
Lucíola- José de Alencar
O beijo no Asfalto – Nelson Rodrigues
Quadrinhos de Carlos Zéfiro.