No primeiro aforisma da Segunda Dissertação da Genealogia da Moral, Nietzsche descreve a relação entre a capacidade de fazer promessas e o esquecimento. O esquecimento é uma capacidade inibidora ativa inerente a natureza humana. A função do esquecimento é impedir que a consciência fique carregada de experiências já vivenciadas (BRANDÃO, 2011). Para o filósofo alemão, o homem é um animal que precisa esquecer para poder experimentar coisas novas e utilizar a habilidade de criação. O esquecimento é essencial para a vida. A medida que o indivíduo consegue esquecer a existência torna-se suportável, a capacidade de esquecimento proporciona “[…] felicidade, jovialidade, esperança, orgulho […]” (NIETZSCHE, 2008, p. 47-48).
Prometer está relacionado com a constituição da memória. A memória é uma força oposta ao esquecimento, ou seja, possibilita a habilidade de não esquecer as experiências vivenciadas. Para ser capaz de prometer o homem teve que desenvolver uma memória. A promessa proporcionou o surgimento de uma memória da vontade, desta forma, passou-se a continuar querendo o já vivenciado. A memória causa interrupção na capacidade de esquecimento, isto impossibilita o homem de experimentar o novo e suprime a habilidade de criação. Com a memória e a promessa o homem tornou-se confiável, pois é impossível confiar em uma pessoa que esquece e não consegue lembrar do prometido.
A capacidade de fazer promessas legou ao indivíduo não apenas a supressão do esquecimento e o aparecimento da memória, mas também se constituiu como base para o aparecimento da ideia de responsabilidade. Para o autor da genealogia, o surgimento da responsabilidade também é devido a moralidade do costume, que tem como tarefa reprimir os instintos e impor leis aos homens. Para transformar o homem em um animal confiável foi preciso subordina-lo a um conjunto de leis, implantando, desta forma, a capacidade de obedecer, recordar e cumprir normas de uma determinada comunidade ou sociedade. Como resultado do aparecimento destas novas capacidades o autor demonstra o aparecimento de um novo sujeito, o indivíduo soberano.
O ser humano, tendo conhecimento e orgulho da capacidade de fazer promessas e da ideia de responsabilidade, surge como um indivíduo confiável, uniforme e com ideia de coletividade. Porém, a sua capacidade de esquecimento foi danificada, ele não consegue ter uma boa assimilação das informações absorvidas pela consciência e a sua saúde psíquica sofre constantes lesões.
Graças a habilidade de prever o futuro, este indivíduo conseguiu controle sobre si mesmo e o destino. A capacidade de responder por uma promessa foi interiorizada pelo indivíduo soberano e transformou-se em instinto. Segundo o autor, o homem soberano nomeou este instinto de Consciência (ALVES, 2010).
Este longo processo de formação da consciência teve em sua base a violência e a crueldade. A instauração da memória foi grafada a fogo no homem. “[…] jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória. […]” (NIETZSCHE, 2008, p.51). Várias técnicas cruéis e inescrupulosas foram utilizadas para auxiliar no processo de memorização. Pela violência o indivíduo passou a obedecer leis que eram contra os seus instintos. Cabe notar que, para o autor, os instintos fundamentam a espontaneidade da vida. O homem visava, ao reprimir o esquecimento e os instintos, os benefícios do convívio social e a suposta proteção de conviver em grupo.
A tese de Nietzsche é de que esses sistemas de sacrifícios, que utilizavam objetos exteriores, foram-se interiorizando no homem. Essa profunda violência para conosco é uma forma de pagar a dívida que temos com a nova estrutura de vivência. O resultado disso é que o homem tornou-se “sério” e desenvolveu a faculdade da razão. Para Nietzsche, este sacrifício que criou a razão é uma severa violência contra o ser humano.
REFERÊNCIAS
ALVES, V. F. C. Promessa e Esquecimento- a Formação da Memória no Pensamento de Nietzsche. Argumentos, Goiás, Ano 2, N° 3-2010.
BRANDÃO, Caius. As relações entre o esquecimento, a memória e a capacidade de fazer promessas. 2011. Disponível em: http://www.academia.edu/1085661/Genealogia_da_Moral. Acesso em: 22 de Março de 2015.
GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche: o humano como memória e como promessa. Rio de Janeiro: Vozes, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral – uma polêmica. São Paulo:Companhia das Letras, 2008.