O grito de liberdade: respeitem o meu desejo

Celma Rodrigues Gonçalves Santana- celmahs20@gmail.com

Breve contexto da mulher social. No período paleolítico, a mulher era figura centralizada, ser celestial, uma deusa, o sagrado, uma divindade, pois, essa figura era capaz do fantástico, trazer ao mundo um outro ser, o que o homem não era capaz. As relações entre homens e mulheres eram espontâneas, não existia o fator transmissão de heranças, poder e disputas de territórios. 

Sua objetivação, à agente da passiva social, se construiu a partir da consciência do homem em sua participação no processo reprodutivo. A partir daí, inicia-se o processo de estratificação social e sexual, a idealização de casamento, herança e propriedade. 

Após essa consciência do homem, a figura feminina é tratada de forma desconstruída e inferiorizada. Na filosofia temos a fala de filósofos como:  Aristóteles- “Portanto, as mulheres são mais compassivas e prontas a chorar, mais invejosas e mais sentimentais e mais contenciosas. A fêmea também está mais sujeita à depressão do espírito e ao desespero do que os homens. Ela é também mais desavergonhada e falsa, mais prontamente enganada, e mais atenta às injúrias, mais ociosa e, em geral, menos excitável que o macho. Pelo contrário, o macho está mais disposto a ajudar e, como já foi dito, mais valente do que a fêmea.” Para Platão, “Mulheres e homens têm a mesma natureza em relação à tutela do Estado, salvo na medida em que um é mais fraco e o outro é mais forte”. 

Sai da filosofia e cai na escritura sagrada, são 31 versículos Bíblicos que citam as mulheres estéreis, se não gesta, é estéril, bem como, àquelas que perderam a sua capacidade fim, a reprodução, mesmo uma vez parido, a falta dessa capacidade, dava ao marido o direito em substituí-la por mulheres mais jovens e férteis. São exemplos clássicos de imagens impactantes de inferiorização e desconstrução da figura feminina e de sua capacidade de ser sujeito de sua vida.  

Em tempos de maior escuridão para a mulher, esta já nascia predestinada a casar, ter filhos, seu destino para a finalidade reprodutiva já estava prescrito, nascer, crescer e reproduzir. Ela não tinha voz para contradizer. Tanto que quando Freud, iniciou seus estudos com as mulheres histéricas, concluiu que os sintomas das histerias estavam relacionados a problemas de ordem sexual. A mulher não possuía capacidade para os atos civis, primeiramente estava sob a guarda paterna, depois, era repassada ao marido. Onde estaria esse amor materno sublimado? Será que a histeria já não era um indicativo de negação à maternidade?  

Sendo a figura feminina por tudo e todos inferiorizada, trataram de seduzi-la com uma proposta compensatória, a maternidade, pois bem, assim, ela poderia ser “quase igual ao homem”.  Emerge então, a figura da mãe, o verniz social e enquadramento dessa mulher, para que ela seja o símbolo do amor supremo, isso, caso seja ela possuidora da capacidade em ser mãe, não esqueçam que nas escrituras bíblicas, não ser mãe é comparada à árvore sem frutos. Impondo a ela uma responsabilidade e peso social sem limites.  

A obra Pietá, do mestre Michelangelo data de 1499

E o canto da sereia sussurra ao vento, em uma sedução quase “irresistível. A maternidade para a mulher aparece como Macunaíma, já nasceu grande, transformada no mito do amor perfeito, da benevolência, piedade, renúncia, da capacidade de cuidar, zelar, sofrer por amar e amar incondicionalmente. 

Registrado em maior ênfase nas obras sacras, pinturas e literatura, onde a figura feminina está sempre representada de forma mais avolumada, seus mantos são grandes para causar o impacto visual, como é grande o seu poder de amar, bem como, a figura permanente de crianças em seu colo ou ladeando-a, demonstração da grandeza e das delícias da maternidade. Porém, com um olhar mais próximo, percebe uma certa angustia nas faces dessas mulheres. Neste sentido, temos o dito popular: “ser mãe é padecer no paraíso”.

Fonte: Pixabay

Apesar desse encantamento para conduzir a fêmea humana, tratando a todas de forma igual, como sendo esse o desejo de toda mulher, esse sentimento está a cada dia tornando -se distante. Na verdade, essa “vontade” está sendo rompida, a figura feminina, escolhe como, quando e se quer ser mãe. A ciência tem colaborado com essa ruptura. 

Com o advento da liberdade feminina, principalmente quando da escolha de seu parceiro e os métodos contraceptivos, esta ideia está se desfazendo como nuvens, a mulher não está preocupada com os olhares de reprovação social.

Arquivo pessoal da autora

Hoje a mulher dirige sua vida, desejos e vontades, não se preocupando se árvore produtiva ou seca e inóspita, árvore sem frutos possuem outros atrativos, ela sabe do seu real valor. Suas avós eram mães de grandes proles, 12, 15 filhos, suas mães por volta de 10 ou 8; sendo que esse número vem decaindo consideravelmente, base nas informações dos Cartórios de Registro Civil no Estado de São Paulo mostra que o número médio de filhos, entre 2000 e 2020, passou de 2.08 filhos por mulher para 1,56, significando redução de 25%.

A nova ordem mundial, já evidencia que a tendência será da mulher dizer não, não estou propensa à maternidade.  Essa redução é mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU), baseada em dados de 2009, divulgou os seguintes resultados de fecundidade: Europa (1,52), Canadá e Estados Unidos da América (2,02), América Latina (2,17), Ásia (2,3), Oceania (2,42), África (4,45). No Brasil, a taxa de fecundidade é de 1,94 filho por mulher.

Essa mudança inicia quando mulher, rompe com a estrutura patriarcal do casamento “arranjado”, e se define na escolha de seu parceiro para figurar como esposo e pai de seus filhos. Aí sim pode-se dizer que a maternidade começa a (re)desenhar uma nova geografia do sentimento amor materno e se alonga, rompendo também com a ideação que a mulher foi feita para parir. Ela também quer ter o poder de escolha, decisão e opinar sobre a sua sexualidade, libido e prazer. Ter prazer por prazer além da maternidade. Distanciando, cada vez mais, dos moldes dos séculos passados.  

A queda do muro da maternidade parece ainda estar na 1ª fase do desenvolvimento humano. Quando, genuíno manifesto da mulher, que fala que seu desejo não é compatível com a maternidade, logo surge alguém para corromper o desejo dessa mulher. Tratam- a como estéril, não somente na capacidade de gerar filhos, mas também, estéril por ser fria, egoísta, calculista, que não gosta de crianças. Onde já se viu rejeitar o Sagrado? 

Arquivo pessoal da autora

Essa liberdade é criticada e está tornando-se vilã e pouco agrada aos olhos dos conservadores por determinar e não acreditar, ainda ou fingir que não acredita, que a mulher possa desenvolver o papel ativo, por que esse princípio é do macho alfa.  

De todas as formas, a espécie feminina é alvo de críticas sociais, se mãe solo é criticada por ser tratada muitas vezes, como sendo uma libertina e irresponsável sexual, se casa e depois divorcia, é a incapaz, não teve a capacidade em preservar o marido e a família. Se ela se define que não quer ser mãe, é criticada mais uma vez, por ser tratada como fria, calculista e egoísta. Dirão: Como pode, o sagrado deu a ela a oportunidade de ser mãe e ela repudia?

Essa ideia machista é real e presente na nossa sociedade, representada nos crescentes feminicídios em razão da recusa da mulher não querer prolongar um relacionamento. Para o sexo masculino, essa postura feminina está invertendo a ordem social, quem manda é o macho e quem obedecesse é a mulher, o sexo frágil.

As formas ortodoxas de poder já não são aceitas pela classe feminina. Em tempos contemporâneos, ela tece sua vida, onde cria os novelos familiares, amorosos e laborais em uma perspectiva ilimitada no que aspira e deseja para sua vida. Foi-se o tempo em que sua voz, era meros sussurros inaudíveis, que se perdiam ao ecoarem ao vento.

Nesse sentido, a maternidade tida como natural, sagrada e necessária, está sendo transformada gradativamente para ajustar à nova realidade feminina, hoje ela possui a seu favor a alternativa de retardar a gravidez para momento em que considerar oportuno ou dizer abertamente que não aspira a maternidade. Os métodos de planejamento familiar e a ciência propiciam que mulheres possam optar em que fase da vida desejam ser ou não ser mães. Os fatores socioeconômico e cultural de cada mulher possuem impacto e definem suas escolhas.

Ser mãe ou não ser, eis a questão.  Por um lado, se for uma escolha planejada e responsável a maternidade apresentará um estreito vínculo emocional entre mãe e filho, por outro lado, se a opção for pela ‘não ser mãe’, provoca a indignação dos instintos mais primitivos da natureza humana. A mulher não é uma ameba em coma, ela é capaz de tomar decisões sobre seu corpo, sua vida e assumir posturas se for a ela apresentadas e oferecidas de igual forma e oportunidades que são ofertadas para os homens. 

Em fim, já que estamos em um momento de extrema religiosidade, deus pátria e família, eis um recado para os desavisados, a mulher contemporânea e progressista, também têm seu desejo estampado no texto Bíblico: Lucas 23h29min: “Porque eis que hão- de vir dias em que dirão: Bem-aventuradas as estéreis, e os ventres que não geraram, e os peitos que não amamentaram”!

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES- Obras Completas – História dos animais- 1ª Edição -2014- Editora- WMF Martins Fontes.

Matos, Samuel- Bíblia Comentada por versículos. 

Nunes, S. A. (2011). Afinal, o que querem as mulheres? Maternidade e mal-estar. Psic. Clin., Rio de Janeiro, 23(2),101-115

Organização das Nações Unidas (ONU).

Platão- A República- 1ª edição- editora Lafonte- 2020.