O mandarim miraculoso

Um tema, mesmo velho, pode ser um mundo novo para quem o descobre. Foi o que me ocorreu recentemente ao ouvir o balé “O mandarim miraculoso”, do compositor húngaro Béla Bartók. A composição, formada por 11 movimentos na regência de Pierre Boulez, me surpreendeu muito em uma coleção com 87 músicas do artista. A obra foi inspirada em uma estória de 1916 do escritor Melchior Lengyel.

Fascinado pela música, busquei o enredo do balé. A prosa, transformada habilidosamente em música e dança nos palcos, baseia-se na prática de um plano de três vagabundos que se utilizam de uma mulher como isca para atrair homens a serem assaltados. Primeiro, ela alicia um velho que é escorraçado pelos ladrões por não possuir dinheiro – para estes, o sexo não basta. Depois, seduz um jovem que mesmo sem dinheiro ela se demonstra interessada. Porém, aos bandidos não servem – o amor também não lhes basta. Por último, melifluamente ela atrai um mandarim aparentemente rico. Levado à sua alcova, que servia de covil aos bandidos, o mandarim é sufocado por almofadas. Porém, escapa, e, com brasa nos olhos, parte para cima da mulher no intento de satisfazer sua lascívia. Então, os ladrões o atravessam com uma espada, mas ele não sangra e continua na sua meta de alcançar a sorrateira dama. Ato contínuo, eles decepam-lhe a cabeça em um último golpe. Saqueado e já sem valor aos meliantes que fogem, o corpo do mandarim causa comoção naquela que foi o atrativo da noite. Ao ser abraçado no chão pela mulher, o mandarim milagroso começa a sangrar.


Tamanho apelo sexual e violência, levados aos palcos europeus de 1919, fizeram com que Béla Bartók reeditasse sua obra diversas vezes até 1926 – data definitiva da consolidação da peça.

Analisando o conjunto friamente 95 anos depois da estréia, encontra-se como plano de fundo a mulher que é vista apenas como objeto da lascívia e instrumento nas mãos de proxenetas. Sua figura fica apagada pelos mistérios de um oriental que detinha poderes milagrosos – título da obra: “O mandarim miraculoso”. Em 2015, superada a questão machista do papel da mulher, voltamos nossa atenção a personagem masculina vinda do oriente. Utilizando o sarcasmo como recurso, poderíamos interpretar a obra fazendo piada com os orientais mandarins da atualidade que com voracidade tentam dominar a economia global: cuidado com ‘o china’! Ele quer comer tudo a todo custo.

Mas, o detalhe mais interessante na análise é o caráter psicológico do mágico mandarim. Chama a atenção, ou deveria chamar, o fato que se disfarçou através de poderes miraculosos do oriental. Este só veio sangrar, ou melhor, tornar-se humano, no momento em que foi objeto de pena, de comoção, de um ato de amor da mulher que traiçoeiramente o atraiu.

Quem seria este homem senão aquele que em vida não se julga capaz de ser objeto do amor? Quantas pessoas, hoje ainda, não se julgam especiais e que vivem suas vidas mecanicamente em um mundo absurdo e que fazem roboticamente tudo por não se sentirem  merecedoras do amor? Provavelmente, com sua estrutura psicológica mal formada na infância, não apresentam autoestima suficientemente resolvida na fase adulta para superarem esta questão.

Este homem é carregado pelo individualismo estremado de nossa época. Leva sua vida mecanicamente no intento de mostrar-se capaz de deixar sua marca registrada na história. Deseja a permanência mesmo post mortem. Porém, em sua busca mecânica, ele não vive. Apenas passa pela vida e o tempo lhe foge. Este homem, assim como o mandarim de Bartók, precisa morrer para que nasça o humano verdadeiro, não mais digno de comoção. O que lhe falta é parar para perceber e sentir a vida. Se por um momento, por um instante, ele conseguisse parar para sentir-se vivo, seria capaz de tornar-se humano. Veria que é possível colher um momento. E se, de instante em instante, todos os momentos fossem colhidos, ao final da noite, com a cabeça no travesseiro teria percebido que havia colhido o dia – carpe diem. E assim, sucessivamente colheria meses, anos, décadas. Cada instante seria um grão de areia na ampulheta que marca sua vida.

Por último, resta notar que tanto o mandarim quanto os bandidos, vivendo mecanicamente, se parecem a ponto de se confundirem. Pois, o amor não lhes basta porque não são capazes de percebê-lo. Fazem tudo para saciarem seus desejos individualistas e despropositados no fim.

Para se tornar humano é preciso desvincular-se da vida robótica, individualista e sem sentido, que infelizmente é cada vez mais comum em nossos dias. O mandarim miraculoso é uma fábula da vida no século XX e XXI.

Na mecanicidade não existe o amor, não existe o ser, só existe o vazio humano.