Uma boa razão para estudarmos as paixões seja, talvez, a possibilidade de melhor entendermos a alma humana em toda sua complexidade. Desde Aristóteles até Greimas as paixões suscitam discussões e teorias que sugerem ainda um tema inesgotável. Para os antigos, a paixão era associada à doença, à loucura; uma vez que a opunham à lógica, à razão; modernamente é concebida como uma força motriz que leva o homem à ação (FIORIN, 2007, p. 10).
As paixões estão presentes nos diferentes tipos de discursos: publicitário, político, acadêmico, religioso etc. Entretanto, segundo Fontanille (2008, p. 93) o tipo de discurso no qual a dimensão passional mais se manifesta é o literário, narrativo ou poético mais explicitamente. Há fartos exemplos disso: em Otelo, de Shakespeare, o ciúme e a manipulação são os elementos fundamentais; em Memorial de Aires, de Machado de Assis, é o apego que se estende até após a morte do ser amado; Um amor de Swann, de Marcel Proust, trata da paixão do ciúme; em Os desastres de Sofia, de Clarice Lispector, é a vergonha a paixão retratada. Outro bom exemplo, é o surpreendente conto La forma de la espada, de Jorge Luis Borges, em que a história de Vincent Moon nos leva a refletir sobre a condição humana, sua instabilidade, suas fraquezas e motivações.
Ainda crianças somos orientados a temer desde coisas concretas, como o fogo, a água, objetos cortantes, até aquilo que não conhecemos. Disso se depreende que o medo é fruto da consciência da finitude humana, isto é, tememos basicamente aquilo que ameaça nossa vida e das pessoas que amamos.
Para Fontanille (citado por NASCIMENTO; LEONEL, 2006, p. 628) o medo, o temor e o terror são paixões que nos igualam aos animais e se distanciam de paixões mais nobres, que dão sentido à existência, como o amor, o ciúme, a ambição entre outras; isso porque nestas, o sujeito busca o objeto; naquelas, o sujeito atemorizado foge, rejeita o objeto, o que significaria a decomposição do sentido.
Fontanille criou uma tipologia para o medo baseada no desenvolvimento das formas observáveis e na intensidade da expressão dinâmica. Quando esses dois elementos são fortes surgem os “atores do medo”. Nessa construção, o medo se revela por motivos estereotipados, imediatamente reconhecidos, como a fera, a tempestade, o bandido. Quando o desenvolvimento das formas é fraco e a intensidade forte, surgem as “forças do medo”, nas quais o medo se revela por formas indefinidas, impalpáveis, em que o sujeito somente vê formas e cores, por exemplo. Quando a intensidade é fraca e o desenvolvimento forte, ocorrem as “formas do medo”, nas que o medo se dá por coisas monstruosas, fantásticas, cujo tipo de ação o sujeito desconhece. O último tipo de medo acontece quando os dois elementos são fracos, é a “aura do medo”, que se caracteriza por um mal-estar indefinido. A partir dessa tipologia o percurso do medo é descrito, permitindo observar as transformações textuais, que podem passar da “aura” ao “ator”, à “forma” e à “força”, por exemplo.
Ainda segundo Fontanille, no sujeito amedrontado pode haver, inicialmente, o enfraquecimento da competência modal ou perda do querer, do saber e/ou poder; em seguida pode haver a declinação de componentes corporais, isto é, o corpo manifesta reações de defesa que podem variar muito: frêmito, arrepios, palpitações, paralisia etc. No entanto, por mais humano que seja, muitas vezes o medo é um sentimento associado à fraqueza, à covardia. Existem situações em que não se pode demonstrá-lo. Um revolucionário não deveria ser um covarde.
Segundo Chauí (1996, p. 56), a origem e os efeitos do medo fazem com que não seja uma paixão isolada, mas articulada a outras, determinando o modo de sentir, viver e pensar do sujeito amedrontado. Para Harkot-de-La-Taille (1999, p. 18) a paixão da vergonha é intersubjetiva, surge do cruzamento de outras configurações em que o destinatário assume a perspectiva de um destinador julgador. O sujeito se divide em dois simulacros existenciais: num ele pensa ter certa competência modal positiva, constrói para si uma imagem que acredita representá-lo verdadeiramente; noutro, vê que não possui tal competência, isto é, não é o que pensava ser. Trata-se de uma paixão definida pela combinação do querer ser, não poder não ser e saber não ser. Isso tudo diante do olhar real ou virtual de um espectador cuja opinião importa muito ao sujeito envergonhado.
Vale lembrar as palavras de Chauí (1986, p. 56), para quem “O medo nasce de outras paixões e pode ser minorado (nunca suprimido) por outros afetos contrários e mais fortes do que ele, como também pode ser aumentado por paixões mais tristes do que ele.”
Costumamos confessar a inveja acompanhada de adjetivos atenuantes, como “boa” ou “saudável”, sentimento facilmente confundido com admiração ou mesmo cobiça. Para Ventura (1998, p. 11), ainda que se refira à inveja como um dos sete pecados capitais, “a inveja é um vírus que se caracteriza pela ausência de sintomas aparentes. O ódio espuma. A preguiça se derrama. A gula engorda. A avareza acumula. A luxúria se oferece. O orgulha brilha. Só a inveja se esconde.” Ainda segundo o autor, a inveja se distingue do ciúme, que se caracteriza por querer preservar o que se tem; e da cobiça, desejar o que não se possui. A marca da inveja é não querer que o outro tenha.
Para Mezan (1986, p. 119), a inveja está associada aos olhos, afirmação que se justifica na própria etimologia da palavra, do latim invídia, formada a partir do radical ved-, de vedére. Ainda segundo o autor, outra associação entre a inveja e os olhos está presente no Canto XIII do Purgatório, na Divina Comédia, de Dante Alighieri, em que os invejosos têm as pálpebras costuradas por um fio de arame como castigo, impedindo-os de ver, inutilizando o órgão através do qual pecaram quando vivos.
Para se analisar mais detidamente o comportamento de algumas pessoas é necessário retomar a paixão da vergonha. Harkot-de-La-Taille (1999) lembra que se pode superar a vergonha assumida de três maneiras: pelo esquecimento ou negação, pelo humor ou pela confissão. Por exemplo, o personagem Moon, do livro La forma de la espada, de Jorge Luis Borges, faz uso da confissão para vencer sua vergonha. Ora, o confessando se auto-rebaixa objetivando limpar-se da mácula. Assume e condena o próprio erro e espera ser perdoado, quer que o confessor sinta pena dele, que o aceite, por mais vil que se revele.
Daí o caráter polêmico da confissão, que pode não simbolizar necessariamente arrependimento sincero, culpa ou pesar pela falta cometida. Ela também pode funcionar como estratégia visando a autovalorização do sujeito envergonhado. Através dela o confessando se coloca em situação superior ao do confessor. É como se Moon dissesse a Borges: “Sou covarde e traidor sim, mas sou capaz de reconhecer isso, o que me dignifica”.
Harkot-de-La-Taille (1999) lembra, ainda, que é sincero o fazer-parecer do humor e da confissão resultantes da vergonha, pois, o sujeito envergonhado acredita na imagem que constrói de si mesmo, e o fato de insistir em parecer, representa a luta para que seu valor seja reconhecido.
Enfim, cinco situações básicas de vergonha nos são apresentadas pela autora, que lembra que tal categorização é limitadora, tendo em vista a complexidade dessa paixão. De qualquer forma, a quinta situação básica é a “de expor uma falta moral: crime, maldade, omissão de socorro, omissão ou mentira por silêncio, etc.” (HARKOT-DE-LA-TAILLE, 1999, p. 135). Desse tipo de vergonha, uma característica fundamental é a autorresponsabilização do sujeito. Mas, inicialmente, o ofensor arrependido age como se as projeções que faz de si mesmo e os efeitos de seus atos não se comunicassem, como se a imagem positiva que tem si mesmo não pudesse ser afetada por seus atos.
Embora quando perceba que sua imagem foi atingida por sua atuação, poderá sentir vergonha, mas para que isso aconteça, o sujeito envergonhado deve estar em sincretismo com o destinador julgador. Não obstante, a vergonha por falta moral não é garantia de comportamento moral. Serve, sem dúvida, como freio e controle para possíveis transgressões, assim mesmo pode levar o sujeito a cometer outras transgressões.
Referências:
BORGES, J. L. Artificios. Madrid: Alianza, 1993.
CHAUÍ, M. Sobre o medo. In: CARDOSO, S. (et al). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
FIORIN, J. L. Semiótica das paixões: o ressentimento. In Alfa: revista de linguística. Vol. 51, no. 1. São Paulo, 2007.
FONTANILLE, J. A conversão mítico-passional. In LARA, G. M. P.; MACHADO, I. L, EMEDIATO, W. (org.). Análises do discurso hoje. Vol 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
HARKOT-DE-LA-TAILLE, E. Ensaio semiótico sobre a vergonha. São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 1999.
MEZAN, R. A inveja. In: CARDOSO, S. (et al). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das letras, 1986.
NASCIMENTO, E. M. F. S., LEONEL, M. C. O medo como paixão. In Estudos Linguísticos XXXV, pp. 627-636, 2006.
VENTURA, Z. Mal secreto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.