O Pacto Narcísico da Branquitude: a Psicologia precisa falar disso!!!

Psicóloga Cida Bento é autora do livro O Pacto da Branquitude

Por Cecília Silva Sobreira (Acadêmica de Psicologia) – cecilia.sobreira@rede.ulbra.br

Maria Aparecida da Silva Bento, nascida em 1952 na cidade de São Paulo, é uma figura de destaque no cenário intelectual e ativista do movimento negro contemporâneo no Brasil. Possui doutorado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e é cofundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).

As pesquisas de Maria Aparecida foram impulsionadas ao perceber a falta de reconhecimento da herança escravocrata na sociedade brasileira pelas instituições. Seu principal objeto de estudo foram as intrincadas relações de poder que, de forma sutil, porém firme, foram mantidas por um pacto subjacente entre os brancos ao longo de muitos séculos.

Além de sua atuação como professora comprometida com a educação antirracista,  Cida Bento acumulou vasta experiência na área de recrutamento e seleção como psicóloga. Ao longo dos anos, deparou-se com inúmeras situações que evidenciaram as dinâmicas desiguais e os desafios enfrentados por indivíduos pertencentes a grupos historicamente marginalizados e negligenciados por todas as esferas do poder público.

O livro ‘O Pacto da Branquitude’, publicado em 2022, é composto por 11 capítulos de extrema relevância que versam sobre branquitude; colonização; masculinidade e nacionalismo. Este texto se concentrará especialmente no primeiro capítulo intitulado ‘Pacto Narcísico’, explorando-o sob a perspectiva da Psicologia.

O capítulo inaugural aborda a persistência da branquitude na sociedade contemporânea, delineando os diferentes papéis desempenhados por diversas instituições. Sejam elas privadas, públicas, civis, governamentais ou de qualquer orientação política, todas têm contribuído para a perpetuação da exclusão de indivíduos que não se enquadram estereótipo de homem branco. Analise-se, portanto, como essas instituições atuam de forma a manter a marginalização de pessoas que divergem do paradigma preconcebido.

                                                                                            Fonte: Google.com/imagens

Uma família brasileira do século XIX sendo servida por escravos, pintado por Jean-Baptiste Debret, c. 1830

 

Embora a maioria das instituições proclamem igualdade nos ambientes corporativos e incorporem discursos de diversidade em suas estratégias de marketing, há uma discrepância notável entre o que é afirmado visando vendas e lucro, e o que efetivamente é praticado dentro dessas organizações. Conforme apresentado por Cida (2022), não é raro que empresas e organizações construam suas narrativas sem considerar a diversidade das pessoas com as quais se relacionam.

Sejam essas pessoas consumidoras finais de algum produto e/ou serviço, ou trabalhadores dessas empresas/ cujo trabalho foi se tornando invisível, desconsiderado e diminuído. Quando se considera as contribuições das pessoas negras na história e desenvolvimento dessas instituições, fica evidente a tentativa de silenciamento e não reconhecimento, por parte das pessoas brancas, dos esforços prestados.

Cida (2022) argumenta que esse comportamento, independentemente de ser intencional ou não, contribui pouco para promover a diversidade nos cargos de liderança. Pelo contrário, ao longo dos anos, a estrutura hierárquica institucional e/ou social permanece praticamente inalterada, perpetuando relações de poder fundamentadas em raça e gênero, em visível detrimento de competências e habilidades técnicas.

O acordo tácito da branquitude, predominantemente não expresso, abriga uma multiplicidade de motivações externas e internas para a autopreservação do status quo. Esse pacto se baseia no medo e no preconceito, com distorções e narcisismo sendo elementos compartilhados entre indivíduos brancos. Além disso, o conceito de meritocracia atua como outro fator que perpetua esse ciclo narcisista, tendo em vista que o senso meritocrático carece de reflexão crítica e tende a ser reducionista.

Tal visão, apesar de ser distorcida e poder acarretar sofrimento significativo, promove sensação de bem-estar ao passo em que as pessoas se sentem realizadas por suas conquistas alcançadas pelo esforço individual. Suas raízes podem ser encontradas  na herança escravocrata Brasileira, ou seja, a falsa percepção da meritocracia só é possível porque houve, em algum momento da história brasileira, pessoas escravizadas que passaram a vida realizando trabalhos pesados em condições insalubres para enriquecer um Senhor.

Cida (2022) identifica a presença de um pacto narcísico entre determinados coletivos. No caso específico do coletivo branco, esse pacto da branquitude não apenas serve para preservar suas privilégios e posições de prestígio, mas também atua na supressão da herança escravocrata. Essa herança é marcada por atos de violência extrema e evidente crueldade contra o outro, alguém que jamais poderia ser considerado seus semelhantes.

O reconhecimento da herança proveniente dos antepassados ​​desempenha um papel fundamental na possibilidade de promover mudanças na estrutura social. De acordo com a perspectiva da Psicologia Sócio-histórica, esse reconhecimento implica uma análise contextual e histórica, levando em conta a influência dos aspectos sociais e culturais na formação da subjetividade dos indivíduos, bem como na identidade dos grupos e comunidades.

Além disso, Cida ressalta a urgência de ‘dar voz ao silêncio’. Para ela, o debate sobre a herança herdada é crucial para evitar a repetição dos mesmos erros cometidos pelos antepassados. O ato de discutir e compreender essa herança permite uma reflexão crítica , essencial para romper com padrões específicos e construir um caminho distinto e mais justo para o futuro.