Agora que os blocos carnavalescos tradicionais voltaram com tudo no Rio de Janeiro e já começaram a se popularizar em outras praças, as marchinhas tornaram-se novamente a trilha sonora de muita gente.
Um ritmo contagiante, que surge lá no início do século passado de uma mistura de ritmos portugueses a qual se acrescenta, nos anos seguintes, um pouco do swing americano, a marchinha é democrática ao possibilitar que se dance com o estilo que se desejar. Nada de passos difíceis, ou requebros impossíveis para alguns. Para dançar ao ritmo da marchinha o que conta é a diversão, de todo e qualquer jeito, naquilo que poderia ser chamado até de estilo livre, onde vale inclusive aquela dancinha com os dedinhos para cima, tão habitué das pessoas mais tímidas ou dos gringos que por aqui aparecem na época de carnaval.
E é nesse ritmo que as letras, que tradicionalmente têm alguns refrãos de fácil memorização, vão sendo cantadas sem que seu significado seja plenamente assimilado. Entretanto, ao mergulhar nos sentidos das letras e contextualizando-as com o momento em que foram escritas percebemos que temos em mãos quase que um tratado antropológico da vida social de um povo. Ali se tem história, sociedade, cultura, tradição e mil outras particularidades expostas a quem se dispor a estudá-las e entendê-las.
Desde “Ó Abre Alas”, que é considerada a primeira marcha composta para um carnaval em 1899, e que foi composta, pasmem (fim do século retrasado, lembrem-se), por uma mulher, a compositora e maestrina carioca Chiquinha Gonzaga, temos as marchinhas mostrando ao mundo ao que vieram.
É divertido ver, em uma época em que a mulher ainda buscava seu lugar no mundo então essencialmente masculino, a Colombina dando um belo de um pontapé no pobre “Pierrô Apaixonado” (Noel Rosa e Heitor dos Prazeres, 1935) que estava a lhe encher a paciência, chorando, chorando:
Um Pierrô apaixonado
Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando!
A Colombina entrou no botequim
Bebeu, bebeu, saiu assim, assim
Dizendo: ‘Pierrô cacete! Vai tomar sorvete com o Arlequim!’
Um grande amor tem sempre um triste fim
Com o Pierrô aconteceu assim
Levando este grande chute
Foi tomar vermute com amendoim.
Bom, em dias atuais poderíamos até pensar se a Colombina não estava era insinuando ao Pierrô que procurasse curar sua dor-de-cotovelo amorosa buscando consolo com o Arlequim.
Não é de hoje que as condições climáticas aliadas às péssimas condições de moradia davam a devida deixa para que as marchinhas expusessem a grita da comunidade. Na “Marcha do Caracol” (Peter Pan e Afonso Teixeira, 1951), é ilustrada a insatisfação popular com a situação vivida naqueles tempos e que, convenhamos, só fez piorar até hoje.
Há quanto tempo não tenho onde morar
Se é chuva apanho chuva/Se é sol apanho sol
Francamente, pra viver nessa agonia
Eu preferia ter nascido caracol
Levava a minha casa nas costas muito bem
Não pagava aluguel nem luvas a ninguém!
Morava um dia aqui, um outro acolá
Leblon, Copacabana, Madureira ou Irajá!
Da mesma forma era ilustrada nas marchinhas a insatisfação com as condições socioeconômicas, além da própria questão da moradia, como o “Pedreiro Waldemar” (Roberto Martins e Wilson Batista, 1947) que pegava o trem de madrugada, comia a marmita que levava embrulhada no jornal, construía muitas casas e não tinha onde morar.
Você conhece o pedreiro Waldemar?
Não conhece, mas eu vou lhe apresentar
De madrugada toma o trem da circular
Faz tanta casa e não tem casa pra morar
Leva a marmita embrulhada no jornal
Se tem almoço, nem sempre tem jantar
O Waldemar, que é mestre no ofício
Constrói o edifício e depois não pode entrar
Vale lembrar que o carnaval das marchinhas concentrava-se no Rio de Janeiro, então capital do Brasil, e estas acabavam registrando a realidade local como se fossem crônicas do cotidiano. Por isso grande parte das críticas acabava ligada à realidade local. Foi o caso de Vagalume (Vítor Simon e Fernando Martins, 1954) que retratava de forma divertida a não tão divertida falta de água e luz que a cidade vivia nos anos 1950.
Rio de Janeiro
Cidade que nos seduz
De dia falta água
De noite falta luz.
Abro o chuveiro
Não cai nem um pingo
Desde segunda
Até domingo.
Eu vou pro mato
Ai! pro mato eu vou
Vou buscar um vagalume
Pra dar luz ao meu chatô.
Mas, da mesma forma que havia espaço para a crítica social, havia também o machismo, o preconceito em relação às diferenças e às minorias, algo que hoje, em tempo de patrulha do politicamente correto, seria inconcebível. Ainda que inconcebível tal pensamento hoje em dia, são estas marchinhas que retornam do passado machista e preconceituoso para serem tocadas nos blocos que se apresentam nos carnavais atuais.
Os gagos têm sua vez na pilhéria na marchinha “Piada de Salão” de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, de 1954, também conhecida como “Marcha do Gago”, que apresenta o incompreensível diálogo entre o cliente e o dono do botequim, ambos gagos.
“É ou não é
Piada de salão
Se acha que não é
Então não conto não.
Um sujeito que era gago
Procurou um botequim
Chegou perto do gerente
Outro gago bem ruim
E disse assim:
Eu estou, tô, tô, tô, tô
Aonde é que está, tá, tá
Mas o outro gaguejou
Chi! tra, rá, rá, rá, rá.”
Vem lá de 1920 a crítica machista que se mostra no finalzinho da letra de Pé de Anjo (Sinhô), quando a mulher é comparada à galinha no quesito “interesse”.
Eu tenho uma tesourinha
Que corta ouro e marfim
Serve também pra cortar
Línguas que falam de mim
O pé de anjo, o pé de anjo
És rezador, és rezador
Tens o pé tão grande
Que és capaz de pisar nosso senhor
A mulher e a galinha
São dois bichos interesseiros
A galinha pelo milho
E a mulher pelo dinheiro
Evidente que a posição da mulher como um objeto de interesse sexual tem seu lugar, inclusive abrindo espaço para uma crítica ao comportamento de algumas mulheres que aparentemente faziam por merecer as alcunhas que lhe eram conferidas. Assim era com “Maria Escandalosa” (Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, 1955).
Maria escandalosa
Desde criança sempre deu alteração
Na escola, não dava bola
Só aprendia o que não era da lição
Depois a Maria cresceu
Juízo que é bom encolheu
E a Maria escandalosa
É muito prosa, é mentirosa, mas é gostosa
Hoje ela não sabe nada
De história, de geografia
Mas seu corpo de sereia
Dá aulas de anatomia
Maria escandalosa
É muito prosa, é mentirosa, mas é gostosa
Pulando para 1960 tem-se uma amostra do preconceito em relação aos indígenas, quando o que se espera de um índio é que ele, tal qual no período colonial, seja facilmente comprado por algum presente vindo dos brancos. E o que é apresentado na marchinha é que, quando se espera que o índio busque algo melhor do que um colar esquisito, tem-se que “Índio quer apito” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira).
Ê ê ê ê ê índio quer apito
Se não der pau vai comer
Lá no bananal mulher de branco
Levou pra pra índio colar esquisito
Índio viu presente mais bonito
Eu não quer colar
Índio quer apito
A orientação sexual também não foi poupada e João Roberto Kelly teve grande participação nisso desde a sua ordem para cortar a Cabeleira do Zezé (João Roberto Kelly e Roberto Faissal, 1964) até a sua percepção, já nos anos 1980, de que o sapatão era um sucesso dentro e fora do país, como é até hoje cantado em “Maria Sapatão” (João Roberto Kelly, Don Carlos, Chacrinha e Leleco, 1980). Em sua defesa, deve-se ressaltar que João Roberto Kelly sempre afirmou que “Cabeleira do Zezé” tinha como alvo os jovens da década de 60 que começavam a usar cabelos compridos, não tendo nada a ver com a questão sexual.
Olha a cabeleira do Zezé
Será que ele é
Será que ele é
Será que ele é bossa nova
Será que ele é maomé
Parece que é transviado
Mas isso eu não sei se ele é
Corta o cabelo dele!
Corta o cabelo dele!
Maria Sapatão
Sapatão, Sapatão
De dia é Maria
De noite é João
O sapatão está na moda
O mundo aplaudiu
É um barato
É um sucesso
Dentro e fora do Brasil
Nada mais interessante do que os versos de “O teu cabelo não nega” (Lamartine Babo-Irmãos Valença, 1931) que são cantados ano a ano sem que se dê a devida atenção a sua letra que acaba por traduzir a forma como o racismo é encarado no Brasil: ao mesmo tempo em que se diz que o povo brasileiro não é racista e que enaltece todas as etnias tem-se um preconceito velado mostrando-se de forma sutil em pequenos sinais que se observa no dia a dia. Isso vê-se refletido na letra desta marchinha que, antes mesmo de enaltecer a beleza da mulata, adverte de que o seu amor é objeto de desejo porque a cor não se pega: “mas como a cor não pega mulata, mulata eu quero o teu amor”.
O teu cabelo não nega mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega mulata
Mulata eu quero o teu amor
Tens um sabor bem do Brasil
Tens a alma cor de anil
Mulata mulatinha meu amor
Fui nomeado teu tenente interventor
Quem te inventou meu pancadão
Teve uma consagração
A lua te invejando faz careta
Porque mulata tu não és deste planeta
Quando meu bem vieste à terra
Portugal declarou guerra
A concorrência então foi colossal
Vasco da gama contra o batalhão naval
As marchinhas também serviram para traduzir uma visão geral que havia à época (e que ainda se observa país afora hoje em dia) das condições privilegiadas do funcionalismo público. É assim com “Maria Candelária” (Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, 1952) que explicita a forma como alguns funcionários públicos são alçados às suas funções (saltou de paraquedas, caiu na letra) ao mesmo tempo em que são displicentes quanto às suas obrigações trabalhistas.
Maria Candelária é alta funcionária
Saltou de paraquedas, caiu na letra ó, ó, ó, ó, ó!
Começa ao meio-dia
Coitada da Maria!
Trabalha, trabalha
Trabalha de fazer dó, ó, ó, ó, ó!
À uma, vai ao dentista
Às duas, vai ao café
Às três, vai à modista
Às quatro, assina o ponto e dá no pé!
Que grande vigarista que ela é!…
Claro que para conseguir um empreguinho público sem a necessidade do devido retorno em termos de trabalho efetivo necessita-se de uma indicação de alguém. E nada melhor para esse alguém do que um “Cordão dos Puxa-sacos” (Frazão e Roberto Martins, 1945)
Lá vem o cordão dos puxa-sacos, dando vivas aos seus maiorais
Quem está na frente é passado pra trás
E o cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais
Vossa Excelência, Vossa Eminência
Quanta reverência nos cordões eleitorais
Mas se o doutor cai do galho e vai ao chão
A turma toda ‘evolui’ de opinião
E o cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais
A ambiguidade, o duplo sentido, não podiam ficar de fora. “Sassaricando” (Luiz Antônio, Zé Mario, Oldemar Magalhães, 1951) já tem no seu nome a ideia de algo ligado à malícia brasileira. O interessante é ver que até o velho, na porta da Colombo, é um assombro. E óbvio que quem não tem seu sassarico, sassarica mesmo só!
Sá-sassaricando
Todo mundo leva a vida no arame
Sá-sassaricando
A viúva, o brotinho e a madame!
O velho, na porta da Colombo
É um assombro
Sassaricando
Quem não tem seu sassarico
Sassarica mesmo só
Porque sem sassaricar
Essa vida é um nó
A coisa fica um pouco mais apelativa em algumas marchinhas como “Diabo sem Rabo” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, 1938) que usavam do duplo sentido para fazer graça nos blocos carnavalescos.
A minha fantasia é de diabo
Só falta o rabo, só falta o rabo
Eu vou botar um anúncio no jornal:
Precisa-se de um rabo pra brincar no carnaval
Já comprei lança, carapuça, comprei tudo/Até o pé-de-pato e a capa de veludo
Mas, que diabo! Puxa, puxa, que diabo!
Depois de tudo pronto eu notei que falta o rabo
Nem sempre a malícia é proposital. Característica que parece ser natural do brasileiro, quando a letra não traz em si claramente a tal malícia acaba sendo o próprio povo que dá um jeito de inventar. Foi assim com “A História da Maçã” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, 1954).
A história da maçã
É pura fantasia
Maçã igual aquela
Papai também comia.
Eu li no almanaque
Que um dia de manhã
Adão estava com fome
E comeu a tal maçã.
Comeu com casca e tudo
Não deixando nem semente
Depois botou a culpa
Na pobre da serpente.”
Na versão popular, os primeiros versos viraram “A história da maçã/É pura safadeza/ Adão comeu a Eva/E a maçã de sobremesa”.
Muito mais há para se comentar sobre as marchinhas dos carnavais de antigamente. Há espaço para entender a política, o amor, o patriotismo, a economia, entre inúmeras outras variáveis. Há autores que não poderiam ficar de fora e, ops!, ficaram, como o João de Barro, o Braguinha. Há interpretações que deveriam ter sido citadas, mas que não acharam seu espaço neste texto, como a de Carmen Miranda em “Para você gostar de mim”, mais conhecida como “Taí”. E várias outras marchinhas até mais conhecidas do que algumas aqui apresentadas acabaram por ficar de fora. O autor até queria continuar a escrever “mas é Carnaval!/não me diga mais quem é você!/amanhã tudo volta ao normal/deixa a festa acabar, deixa o barco correr…”