Que possamos defender uma saúde mental que produza vida e dignidade aos usuários.
O Movimento da Luta Antimanicomial tem como base garantir os direitos das pessoas em sofrimento mental, centrado no cuidado em liberdade, combatendo a prática de isolamento como forma de tratamento. Essa prática, muitas vezes motivada por estigmas que cercam as pessoas em sofrimento mental, assim como pela lógica do encarceramento e da punição, retira das pessoas o direito de conviverem em sociedade por serem consideradas inaptas a dividirem esse espaço com as outras pessoas ditas normais.
Promulgada em 2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira, ou Lei Paulo Delgado, trouxe novos caminhos para a política de saúde mental no Brasil, que colocou na agenda a modificação do modelo asilar pela perspectiva social, aberta e comunitária. Frutos de uma luta histórica que teve início no final dos anos 1970 e que através do movimento social e dos trabalhadores da saúde percorreu um longo caminho para ser alcançada.
Nos últimos anos no Brasil, temos enfrentado vários desafios na política de saúde mental e na política de drogas no país, seja por alterações de normativas que regem essas políticas, seja pelos discursos conservadores e proibicionistas proferidos por autoridades. Essas tensões se materializaram no subfinanciamento das estratégias de saúde, sucateamento dos serviços públicos e no aumento dos investimentos governamentais no mercado das comunidades terapêuticas, produzindo um retrocesso nas conquistas da Reforma Psiquiátrica e na Luta Antimanicomial.
A exemplo do afrouxamento das internações involuntárias, Albuquerque (2019) destaca que essa medida acarretou não apenas na alocação de recursos públicos para as comunidades terapêuticas, como já se observou em documentos anteriores, mas também em consequências potencialmente perigosas para a saúde e os direitos dos pacientes/sujeitos envolvidos, assim como: “produzir uma indústria de internações provocada pelos interesses econômicos destas instituições, mas também pela funcionalidade política de punição e segregação dos corpos indesejáveis” (ALBUQUERQUE, 2019, p.10).
Segundo Farias (2019), essa abordagem se concentra exclusivamente no modelo biomédico e delega ao médico a responsabilidade pela tomada de decisão, sem levar em conta os fatores sociais. Isso resulta na perda de autonomia e liberdade dos indivíduos e permite a implementação de medidas rejeitadas historicamente pela comunidade científica, entidades, usuários e profissionais. Além disso, amplia-se o grupo de pessoas que podem decidir sobre a vida de outros, de acordo com seus próprios valores e concepções do que é certo ou errado.
Esses reflexos são observados no cotidiano dos serviços, reproduzidos nos discursos dos profissionais, pela dinâmica interna do fluxo e nos atendimentos. O que nos mobiliza a resgatar as pautas da Luta Antimanicomial, assim como enfatizar as conquistas da Reforma Psiquiátrica e ampliá-la cada vez mais na construção de políticas de saúde mental e no cotidiano dos espaços de trabalho.
Atualmente, temos vivenciado pequenas medidas nesse sentido no que tange essas políticas, como por exemplo, a decisão do governo federal em cortar verbas destinadas às comunidades terapêuticas, assim como a decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que prevê o fechamento dos manicômios judiciários no Brasil. Mas o trabalho ainda é grande e é importante sempre lembrar que saúde mental se faz com melhor qualidade de vida da população, com acesso à saúde, educação, assistência social, moradia, emprego e com a ampliação e maior investimento na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e na perspectiva do cuidado integral à saúde.
“Desinstitucionalização” significa tratar o sujeito em sua existência e em relação com suas condições concretas de vida. Isto significa não administrar-lhe apenas fármacos ou psicoterapias, mas construir possibilidades. O tratamento deixa de ser a exclusão em espaços de violência e mortificação para tornar-se criação de possibilidades concretas de sociabilidade a subjetividade” (Amarante, 1995, p.494).
O estigma, o preconceito e o paradigma proibicionista ainda rondam a construção de políticas, e principalmente a prática profissional nos espaços de trabalho da RAPS. Que possamos defender uma saúde mental que produza vida e dignidade aos usuários. Fortalecendo o cuidado e ampliando as práticas de redução de danos e do cuidado em liberdade, defendidos pela Reforma Psiquiátrica e pela Luta Antimanicomial, e que priorize o respeito à diversidade e a autonomia dos usuários.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Cynthia Studart. Pacote anticrime e “nova” lei de drogas: fascistização neoliberal e gestão dos indesejáveis. In: 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, 16., 2019: Brasília – DF.
AMARANTE, Paulo. Novos Sujeitos; Novos Direitos: O debate em torno da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 11 (3): 491-494, Jul/Set, 1995.
FARIAS, Lara Lisboa. Estado, nova direita e contra reforma: uma análise sobre os atuais parâmetros da Política de Drogas no Brasil. 2019. 130 f. Dissertação (Mestrado em Política Social). Universidade de Brasília, Brasília, 2019.