Passarinho

Passarinhos-Emicida

Despencados de voos cansativos
Complicados e pensativos
Machucados após tantos crivos
Blindados com nossos motivos
Amuados, reflexivos
E dá-lhe antidepressivos
Acanhados entre discos e livros
Inofensivos

Será que o Sol sai prum voo melhor?
Eu vou esperar
Talvez na primavera
O céu clareia, vem calor, vê só
O que sobrou de nós e o que já era

Em colapso o planeta gira
Tanta mentira aumenta a ira de quem sofre mudo
A página vira, o são delira
Então a gente pira e, no meio disso tudo, tamo tipo

Passarinhos soltos a voar, dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro
Passarinhos soltos a voar, dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro

Laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá

La-laia, la-laia, la-laia
Ah-ahn-ahn-ahn-ahn
Ah-ahn-ahn-ahn (ah, ah, ah, ah)

A Babilônia é cinza e neon, eu sei
Meu melhor amigo tem sido o som, okay
Tanto carma lembra Armagedom, orei
Busco vida nova tipo ultrassom, achei
Cidades são aldeias mortas, desafio nonsense
Competição em vão, que ninguém vence
Pense num formigueiro, vai mal
Quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus
No pé que as coisas vão, jão, doideira
Daqui a pouco resta madeira nem pro caixão
Era neblina, hoje é poluição
Asfalto quente queima os pé no chão
Carros em profusão, confusão
Água em escassez, bem na nossa vez
Assim não resta nem as barata (é memo)
Injustos fazem leis e o que resta procês?
Escolher qual veneno te mata
Pois somos tipo

Passarinhos soltos a voar, dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro
Passarinhos soltos a voar, dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro

Laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá

Laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá

Laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá

Passarinhos soltos a voar, dispostos a achar um ninho
Nem que seja no peito um do outro
Passarinhos soltos a voar, dispostos a achar um ninho (dois, três, quatro)
Nem que seja no peito um do outro

Fonte: Desenho para Colorir

Quem diria que uma música lançada lá em 2015 faria tanto sentido ainda em 2024? Como ele revela na letra de “Passarinhos”: “E dá-lhe antidepressivos /  o são delira / Então a gente pira  / Cidades são aldeias mortas / Competição em vão, que ninguém vence”. Estes refrões carregados de significado simbólico, marcam uma angústia muito contemporânea, na qual o homem vive de anestesiar suas emoções, em uma vida de competições, que acaba por ser sem sentido, dito que a linha de chegada é inalcançável, e a evidente perda do senso coletivo, de um pertencimento comunitário resultando em uma aldeia morta, então o que resta a nós, a não ser pirar? E ouso dizer que pirar é o mais perto que chegamos da lucidez. 

Nos tensiona a uma reflexão acerca de como temos sofrido um deslocamento de valores, na perda de processos de significâncias, que postulam tanto o homem, quanta a terra em objetos: “Quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus”/“No pé que as coisas vão, jão, doideira Daqui a pouco resta madeira nem pro caixão. Simbolizando aqui a nossa perda e desencantamento do mundo, de onde se desloca o sagrado do corpo e território, transformando-os em matéria, que podem ser exploradas, vendidas e subjugadas, dada a essa perda de significado e sentido, e a um processo de racionalização que retira o sentido mágico que transforma tudo em apenas “coisas e objetos”. 

“Quanto mais o intelectualismo repele a crença na magia, e com isso os processos do mundo ficam ‘desencantados’, perdem seu sentido mágico e doravante apenas ‘são’ e ‘acontecem’, mas não ‘significam’ mais nada, tanto mais urgente resulta a exigência, em relação ao mundo e à ‘conduta de vida’ como um todo, de que sejam postos em uma ordem significativa e plena de sentido” (WEBER, 1991, p. 344). 

Em uma rápida busca no google, em 2024, esses são os títulos de algumas manchetes : “Seca ‘sem precedentes’ faz lago no AM definhar” (Uol, 2024);  “Inmet publica alerta laranja” (Agora RS, 2024); “Cerrado tem alta de 19% nos alertas de desmatamento” (Agência Brasil, 2024); “Focos de incêndio na área amazônica em 2024 superam os números do ano anterior” (CNN Brasil,2024); E lá em 2015 já cantava Emicida: “Era neblina, hoje é poluição/Asfalto quente queima os pé no chão /Carros em profusão, confusão/ Água em escassez, bem na nossa vez/ Assim não resta nem as barata (é memo)/ Injustos fazem leis e o que resta procês? Escolher qual veneno te mata”/ No pé que as coisas vão, jão, doideira/ Daqui a pouco resta madeira nem pro caixão” com muita sensibilidade esse refrão me toca, pois todos os dias as notícias e manchetes pronunciam, a chegada desse dia, em que não teremos madeira nem pra caixões, e sentir a iminência desses versos, nós despertam indignação e desesperança, com o descaso por crises humanitárias que são recorrentes de anos, me faz pensar no que disse Alanis Obomsawin “Quando a última árvore tiver caído, quando o último rio tiver sido poluído, quando o último peixe for pescado, vocês vão entender que dinheiro não se come.”  É urgente rever nossas formas de existir, é urgente que se dê nome aos grandes “produtores” dessas crises os “Injustos fazem leis”, que sejam taxadas as desigualdades, que imperam na criação de calamidades humanitárias e ambientais.

Mas apesar de: “Despencados de voos cansativos/ Complicados e pensativos/ Machucados após tantos crivos/ Blindados com nossos motivos/ Amuados, reflexivos.” Podemos então acreditar que “Será que o Sol sai prum voo melhor” Emicida traz aqui uma metáfora “soltos a voar, dispostos a achar um ninho/ Nem que seja no peito um do outro” que eu traduzo como uma tecnologia revolucionária o procurar o outro, o formar um ninho, o encantar o mundo, o resgatar simbolismos, e quem sabe assim voltar a criar dias melhores.

Referências

CAPRIOLI, Victor. Agora RS. O retorno da chuva. Inmet publica alerta laranja de tempestade para o RS. Rio Grande-Sul. Disponível em: <link>. Acessado em: 03 Out, 2024.

UOL. Seca ‘sem precedentes’ faz lago no AM definhar. São Paulo,2024. Disponível em: <link>. Acesso em 03 Out, 2024.

BONDE, Letycia. Agência Brasil.Cerrado tem alta de 19% nos alertas de desmatamento em fevereiro. São Paulo, 2024. Disponível em: <link>. Acesso em 03 Out, 2024.

CARDOSO, Alan. CNN Brasil. Focos de incêndio na área amazônica em 2024 superam os números do ano anterior. São Paulo, 2024. Disponível em: <link>. Acessado em 03 Out, 2024.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. vol. I. Brasília: Ed. Univ. Brasília, 1991.