A patologia, enquanto ramo da ciência médica, estuda as alterações morfológicas e fisiológicas que definem os estados de saúde e doença. No entanto, quando essas categorias escapam do campo técnico e invadem o território do vivido, transformando o simples ato de existir em sintoma, nos deparamos com um fenômeno perigoso: a patologização da experiência humana. Vivemos uma epidemia de autodiagnósticos, onde cansaço, tristeza, angústia e até a lucidez são reduzidos a rótulos do DSM-5 como se a complexidade do psiquismo pudesse ser capturada por manuais que, não por acaso, são atualizados conforme os interesses da indústria farmacêutica. O poeta baiano Tácio Pimenta, em versos cortantes, denuncia:
“anúncios abilolados propagandeiam pílulas/ edifícios são erguidos em fast forward/ um remédio para cada emoção? – pergunta a razão/ porém os meus olhos mal sabem o que veem”.
Essa prática não é ingênua, ela ecoa a história sombria da psiquiatria, que já serviu para segregar “indesejáveis” dos escravizados que fugiam às senzalas (diagnosticados com drapetomania) às mulheres rebeldes (tratadas com histerectomias morais no século XIX). Hoje, sob o véu do “cuidado”, repete-se a mesma lógica: individualizar o sofrimento é eximir o sistema. Se um trabalhador entra em burnout, a culpa é da sua “incapacidade de lidar com o estresse”, não da precarização laboral. Se um jovem desenvolve ansiedade, a solução é um ISRS (Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina), não a discussão sobre o futuro sob o capitalismo tardio. Como alertam Albuquerque e Lobato (2022):
“No neoliberalismo, glamouriza-se o sofrimento mental e naturalizam-se suas causas, reduzindo-o a disfunções cerebrais. O diagnóstico, que outrora excluía, agora valida, mas para criar novos mercados: de psicotrópicos, de terapias, de identidades medicalizadas.”
Essa é a armadilha. O mesmo sistema que nos adoece vende a cura, e lucra com a nossa incapacidade de distinguir o que é patologia do que é resistência. Maria Pato nos lembra que: “A lógica manicomial não está confinada aos hospícios. Ela se reproduz na exigência de produtividade 7/1, na criminalização da preguiça, na patologização da divergência. O ‘normal’ é um constructo eugênico: branco, masculino, burguês, adaptado.”
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A contemporaneidade assiste a uma perversa colonização das subjetividades através da psicopatologização da existência, processo que transforma respostas humanas naturais em transtornos mentais individualizados. Como alerta Han (2015), “a sociedade do desempenho produz depressivos e fracassados”, convertendo termos como depressão e TDAH em instrumentos de controle social que medicalizam desde a tristeza legítima rebatizada como “distimia”, até a indignação política, categorizada como “transtorno de desregulação do humor”. Essa apropriação do vocabulário psicológico opera uma violência epistêmica que, ao individualizar o sofrimento, esconde suas causas estruturais: enquanto o luto indígena pela terra devastada é patologizado, os executivos que ordenam tal devastação são celebrados como modelos de racionalidade.
Diante desse cenário, urge resgatar a saúde mental como ato político, contextualizando radicalmente o sofrimento, reconhecendo que não existe depressão desconectada do capitalismo tardio, nem ansiedade dissociada da necropolítica (MBEMBE, 2018) – e coletivizando os processos de cura. Como afirma Manoel de Barros (1996, p. 45), “doente era a vista que não via o invisível”, lembrando-nos que a verdadeira arte de não ser doente reside em diagnosticar as estruturas sociais adoecidas, não os indivíduos.
Referências:
ALBUQUERQUE, Flávia; LOBATO, Luciano Ernesto. Identidade diagnóstica: por que estamos nos identificando mais com transtornos? 2022. VALENTE. Revista das trabalhadoras e dos trabalhadores do Judiciário Catarinense | ano 4 | número 7 | setembro 2022. Disponível em: https://www.sinjusc.org.br/wp-content/uploads/2022/09/Valente-7-ed-20_09_2022-web.pdf. Acesso em: 15 nov. 2024.
BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 2016. Disponível em: https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/28000186.pdf?srsltid=AfmBOorDX9QmfFoNsU1uf8akX_x6wm2GqutbQCr9us-5rmOlUJYRTcYP. Acesso em: 30 mar. 2025.
BONTEMPO, Valéria Lima. NECROPOLÍTICA, RESISTÊNCIA, SACRIFÍCIO E TERROR. 2018. MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 80p.. Disponível em: file:///C:/Users/Juliana/Downloads/hals,+Bontempo.pdf. Acesso em: 10 mar. 2025.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2015. Disponível em: http://psico.cinead.org/wp-content/uploads/2021/10/HAN_BYUNG_CHUL_Sociedade-do-cansac%CC%A7o.pdf. Acesso em: 12 mar. 2025.
PATTO, Maria Helena Sousa. A cidadania negada: Políticas públicas e formas de viver. 2022. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Disponívelem:https://www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/913/826/3010?fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAaZXn9RkNHqGYAaWsorv0LOjhG9VtjU-nGs6FA5QR4H0vxNsqpuGUm6a4fk_aem_GLfmgYmODKXZYNPjdnE7hQ. Acesso em: 10 mar. 2025.
PATTO, Maria Helena Sousa. Mutações do cativeiro:: escritos de psicologia e política. escritos de psicologia e política. 2022. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Disponível em:https://www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/918/831/3025?fbclid=PAZXh0bgNhZW0CMTEAAaY3LAbyD-vxVY-_hOmAzpBT4ubtlFLM_UpBoVHMXpIbq51lMmSd8ReFoms_aem_w6C2zHDifgrrM2zUVVsNcA. Acesso em: 10 mar. 2025.