Patriarcado e Sexualidade na Meia Idade: Os Conflitos de Gênero Femininos

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A meia idade para as mulheres é frequentemente marcada por uma complexa interação de expectativas sociais e pressões culturais, moldadas por um sistema patriarcal que historicamente as inibe e estereotipa. Nessa fase da vida, as mulheres enfrentam desafios únicos em seus relacionamentos, onde os interesses em comum podem se chocar com as normas de gênero internalizadas. A busca por harmonia e satisfação mútua, seja em viagens, culinária, educação dos filhos ou expressão da fé muitas vezes é ofuscada por conflitos que refletem as desigualdades de gênero arraigadas em nossa sociedade. Neste texto, vamos explorar como essas dinâmicas afetam especificamente as mulheres de meia idade, focando na queixa recorrente da discrepância entre o interesse e a frequência sexual. Embora a pesquisa sobre a saúde mental feminina sob a perspectiva de gênero ainda seja incipiente, estudos já apontam a importância de analisar como a experiência do sofrimento psíquico é construída socialmente, especialmente para mulheres que vivenciam as transformações da meia idade (Zanello; Silva, 2012; Santos, 2009; Andrade, 2014). Vamos destacar algumas das facetas que distanciam mulheres e homens, em algo que deveria ser de interesse mútuo: a sexualidade.

No que tange às mulheres de meia idade, em nossa cultura, a imagem se confunde com a da beleza, marcada sobretudo por um modelo lipofóbico (Novaes, 2006). Veicula-se a noção de que esse padrão ideal é acessível a todas as mulheres e que, portanto, aquela que não se encontra dentro dele é julgada por um crivo moral, considerada inferior, “menos mulher”: “Ela pode ser bonita, deve ser bonita, do contrário não será totalmente mulher” (Novaes, 2006; p. 85). Esse ideal de beleza necessita ser destacado. Geralmente, ele é marcado por uma ruptura em relação ao ideal estético no qual a mulher já se encaixou em algum momento e já foi desejada. O sofrimento ocorre quando a mulher deixa de atender a esse ideal, porque de certa maneira revela um lugar que ela não mais ocupa: a posição de ser valorizada pelo olhar do outro, e o quanto não ocupar mais este lugar a faz sofrer.

À respeito da renúncia sexual e dos traços de caráter relacionais, a ideia de “verdadeira mulher” é perpassada pelo valor da contenção/recato da sexualidade e o exercício de cuidados (amor) ao outro (Bordo, 1997; Perrot, 2003; Swain, 2006; Zanello; Romero, 2012) expressos no desempenho dos papéis de esposa, dona de casa e, principalmente, mãe (Swain, 2011). A esfera que cabe à mulher é a da família, onde o ideal de existência que encontra é o viver para os outros, se sacrificar, viver no esquecimento de si por amor ao outro. Estar fora deste espaço não é somente considerado uma violação social, mas é visto como uma “desnaturalização”. Nas fendas do dispositivo da sexualidade, as mulheres são “diferentes”, isto é, sua construção em prática e representações sociais sofre a interferência de um outro dispositivo: o amoroso. O amor está para as mulheres o que o sexo está para os homens: necessidade, razão de viver, razão de ser, fundamento identitário (Swain, 2006, online). 

Fonte: https://shre.ink/e43g

Em consequência de tanta repressão em conformidade com os valores de nossa sociedade patriarcal que subjuga o corpo da mulher ao status de objeto do homem, o sexo foi apontado como sinônimo de cumprir deveres matrimoniais e como valor simbólico de troca para conseguir algo sobre o poder dos homens. Como salienta Zanello (2014b), a conformidade naturalizou e legitimou a coerção sexual em nossa cultura, de modo a invisibilizar seu caráter de violência. A autora destaca que a vivência do sexo no casamento pela mulher se dá, muitas vezes, como débito conjugal, no qual a mulher experimenta sentimentos antagônicos de servidão e repulsa, se auto violentando, numa lógica onde o dispositivo amoroso se faz imperativo.   

Outra categoria evidente que distancia homens e mulheres é o desprezo masculino pela dialética, ignorando o pensar da mulher. Essa passa a procurar a posição de silenciamento. A socialização feminina privilegia este lugar de silêncio (Perrot, 2003; Garcia, 1995), no qual a mulher deve estar atenta e tomar cuidado com o que diz e a maneira como age, mostrando-se recatada, polida, contida e calada. O silêncio apareceu como: 1) mecanismo de defesa, a fim de evitar brigas; 2) religião como forma de apaziguamento e silenciamento – função domesticadora; e, por fim, 3) condição de existência e consequente caminho privilegiado de adoecimento – depressão.  

Segundo a autora, a ausência de alternativas e de dialética para o “ser mulher” aprisiona sua vida “num estado de impotência lamuriosa” (Garcia, 1995), no qual a única saída encontrada pelas mulheres à restrição de sua existência é mergulhar em uma profunda depressão. Essa nos diz respeito da autoanulação das expressões de toda uma vida, inclusive sexual. Assim, simultaneamente essa mulher objetificada vive uma vida de conformismo, violência e silenciamento, como evidencia a singularidade de gênero na nossa cultura em pleno século XXI: para as mulheres, é permitido o desejo sexual, desde que este seja chancelado por um casamento, e o sexo vivenciado fora da instituição do matrimônio é visto como algo desmoralizante.

Essa mesma mulher que desde muito cedo foi reprimida a não pensar e desejar o ato sexual, agora sofre forte pressão para ter energia psíquica para o ato sexual.

Parece um tanto antagônico que a sociedade ainda não tenha se dado conta de tamanha discrepância, enquanto para os homens o ideal hegemônico de masculinidade em nossa cultura é marcado pela virilidade sexual (Welzer-Lang, 2004; Zanello; Gomes, 2010), que se firma e é validada mediante a fabricação/demonstração de uma excelência de desempenho (Badinter, 1992; Azize; Araújo, 2003), enquanto as mulheres que apresentam atitudes de autonomia e posicionamento ainda hoje sofrem julgamentos de mulher adiantada ou transtornada.  

Em suma, as mulheres de meia idade se encontram em uma encruzilhada complexa, onde as expectativas sociais e as pressões culturais moldam sua experiência sexual e seu bem-estar psíquico. A discrepância entre a permissão condicionada do desejo sexual feminino e a valorização da virilidade masculina perpetua desigualdades e sofrimento. Romper com esses padrões exige uma reflexão crítica sobre as construções de gênero e um esforço coletivo para promover relações mais equitativas e saudáveis, reconhecendo e valorizando a singularidade e a autonomia das mulheres de meia idade.

Referências:

Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico Valeska Zanello, H Gabriela Fiuza, Humberto Soares Costa Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil

Fractal: Revista de Psicologia, v. 27, n. 3, p. 238-246, set.-dez. 2015. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/1483

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