Ao longo da história e dos mitos que a humanidade traz consigo, muito se foi dito acerca da eternidade, da beleza e da juventude do ser humano, que em tantas histórias e contos se referenciou nos deuses, comumente representados como figuras eternas e que na psicologia analítica são vistos como arquétipos.
Os arquétipos são figuras que remetem a um conteúdo específico, uma forma, como por exemplo, o arquétipo materno representado por a grande deusa, a virgem, a esposa, a vó e também pode ser atribuída à lua e a terra, dentre tantas outras representações que são formadas no inconsciente (JUNG, 2002).
O arquétipo do Puer Aeternus se construiu em várias culturas através dos mitos, tanto orientais como ocidentais, sendo associado à beleza, juventude e eternidade, retratado em diversos deuses; sua maior associação é com o arquétipo do deus menino, sendo comumente atribuído aos deuses gregos Dionísio e Eros, seu significado é descrito como “juventude eterna” enquanto que na psicologia analítica pode ser também atribuído ao jovem que tem algum complexo materno incomum (VON FRANZ, 1992).
Portanto o indivíduo que se vê tomado pelo arquétipo do Puer Aeternus é retratado da seguinte maneira:
Em geral, o homem que se identifica com o arquétipo do puer aeternus permanece durante muito tempo como adolescente, isto é, todas aquelas características que são normais em um jovem de dezessete ou dezoito anos continuam na vida adulta, juntamente com uma grande dependência da mãe, na maioria dos casos (VON FRANZ, 1992, p. 3-4).
Na clínica junguiana, muito se trabalha com os aspectos arquetípicos nos quais encontram-se no inconsciente coletivo e podem levar aos complexos a partir das experiências pessoais que são atribuídas ao inconsciente individual, sendo melhor explicados por Jung (2002, p. 53) da seguinte forma:
O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Enquanto o inconsciente pessoal é constituído essencialmente de conteúdos que já foram conscientes e no entanto desapareceram da consciência por terem sido esquecidos ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e, portanto, não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade.
A partir da breve explicação, falaremos então acerca de um caso clínico relacionado ao Puer Aeternus, porém, aqui postularemos como a Puella Aeterna, ou a eterna menina, que é o aspecto feminino do Puer com algumas características que podem se diferenciar, sendo geralmente caracterizada como uma mulher que ainda vive com aspectos infantis, geralmente por consequência de pais passivos e em sua maioria por mães controladoras. Sendo assim Leonard (1998, p. 64) conclui:
[…] a eterna menina em geral adquire sua identidade a partir das projeções feitas pelos outros sobre ela, entre as quais: a mulher fatal, a boa filha, a esposa e anfitriã encantadora, a princesa maravilhosa, a musa inspiradora, e até mesmo a heroína trágica. Em lugar de assumir a força e o poder do potencial que lhe é inerente, e as responsabilidades que o acompanham, a eterna menina permanece frágil. Como uma boneca, permite aos outros fazerem de sua vida o que bem quiserem.
A partir de tal conceito, podemos seguir ao caso clínico que envolve uma paciente jovem de 18 anos na qual chamaremos de Hebe (nome fictício), que ao chegar no consultório se mostrou muito receptiva e falou acerca de seu acompanhamento clínico anterior, da sua vida familiar, um pouco da sua história, dos seus sentimentos e vivências, foi conversado com ela acerca da abordagem que seria utilizada na terapia (Psicologia Analítica), e questionamentos acerca de inclinações para artes e hobbies que a mesma poderia ter. A paciente relatou gostar de filmes “clichês” e também antigos. Outro aspecto relevante retratado foi acerca do gosto por desenhar, onde ela revelou gostar bastante, mas que não o fazia há algum tempo por receber críticas negativas da mãe acerca de alguns dos seus desenhos, que inclusive foram jogados fora por Hebe.
Podemos observar aqui um aspecto muito comum da Puella, onde a paciente demonstra reminiscências da infância tendo suas decisões tomadas a partir de influências dadas pela mãe, que notavelmente exerce um controle exacerbado sob a vida de Hebe, como citado por ela em um exemplo acerca de sua vontade de fazer uma faculdade fora, mas que não seguiu adiante com a ideia após sua mãe reforçar que ela não daria conta por ser uma pessoa de “mente frágil” para lidar com uma vida longe.
Hebe confirma verbalmente o que sua mãe disse a respeito dela, fala que se sente uma pessoa frágil emocionalmente e que sempre está sendo afetada por algo, portanto quando ocorre um evento que lhe afete negativamente ela costuma ir para um canto e ficar sozinha, ela relatou ser uma pessoa que não demonstra seus problemas, que geralmente se sente culpada em incomodar os outros e sente culpa até mesmo por problemas que são inevitáveis, como por exemplo uma doença recente que sua mãe passou, no qual Hebe disse de alguma forma sentir-se culpada por toda aquela situação. Acerca disso Leonard (1997, p. 81) nos traz que:
Um elemento comum a todos os padrões pueris é o apego a uma inocência ou uma culpa absolutizada que são os dois lados de uma moeda capaz de alimentar a dependência de outrem que reforce ou condene os atos. Existe em todos a relutância de responsabilizar-se pela própria existência, a ausência de tomada de decisões e discriminações; é o outro que se incube disso.
A paciente relata ter tido fortes crises de ansiedade e as situações nas quais teve, como por exemplo quando foi visitar sua mãe que estava internada e durante a crise que teve ela se viu tomada por um pânico que a deixou paralisada tendo inclusive que ser atendida por enfermeiras que estavam no local. Nesse momento ela diz ter tido muito medo de que sua mãe viesse a falecer. Esse aspecto muito nos fala acerca do medo terrível de separação da paciente com sua mãe, onde há visivelmente uma ausência de ruptura e o medo de encarar o mundo, sendo esse último aspecto relacionado à introversão.
Hebe diz que sua timidez é tamanha, que ela não costuma fazer amigos por dizer que não gosta de sair, tendo como explicação o fato de que todos que querem ser seus amigos sempre chamam para ir a festas e ela prefere não fazer amizades a ter que recusar os convites. Von Franz (1990, p.11) nos fala que:
No caso da atitude introvertida […] a pessoa tem a impressão de que um objeto opressor quer constantemente afetá-la, objeto do qual ela deve afastar-se de maneira contínua. Tudo se abate sobre a pessoa, que é constantemente oprimida por impressões, embora não perceba que secretamente está tomando energia psíquica do objeto e passando-a a ele através da sua extroversão inconsciente.
A paciente relata que não costuma conversar muito com os irmãos, pois são pessoas que levam tudo na brincadeira, também não conversa muito com seus pais, porquê sua mãe é muito fechada e o seu pai, devido ao histórico do divórcio também não é muito amável. Segundo a paciente sua mãe passou a tratá-la de forma diferente após a separação dos pais, que as coisas ficaram diferentes, pois ela sente muita falta da época em que os pais moravam juntos.
O Pai de Hebe mora em outro estado, e por vezes abandonou a família sem dizer quaisquer coisa, isso, nas palavras da paciente, deixou-a insegura, e contou que certa vez o pai propôs que sua mãe, ela e os irmãos fossem morar com ele, ele deu o dinheiro para irem, porém, ao chegar lá ficaram cerca de dois meses e o pai os abandonara novamente em uma casa pequena sem dar quaisquer satisfações, deixando-os inclusive sem dinheiro algum até mesmo para voltar, e que apenas conseguiram voltar após contato com a família na cidade que moravam.
Essa história nos remete em partes ao que Leonard (1997) discorre acerca do padrão da Puella da “menina de vidro”, fazendo uma análise da peça “Zoológico de Vidro” de Tennessee Willians (1945) onde se observa a protagonista Laura, marcada por uma relação de um pai ausente que se mostra como uma garota de extrema timidez, com uma mãe que faz suas projeções nela tomando partido por suas decisões:
Para Laura, não existia relação com o masculino, não havia nenhuma influência ativa e consciente do pai, nenhum relacionamento com o mundo exterior […] Desprovida de projeções masculinas e de uma relação com o masculino, Laura cria seu próprio mundo, uma vida de fantasia que compensa seu isolamento em relação ao mundo exterior. (LEONARD, 1997, p.70)
Durante o atendimento com Hebe, ao mencionar que provavelmente falaríamos de sonhos, perguntei se ela costumava sonhar, e se recordar dos sonhos, ela mencionou que sim, logo após questionei se ela tinha algum sonho específico, logo ela me contou de um sonho que já se repetiu algumas vezes segundo ela, no qual ela se via em um apartamento que era somente dela, dado por sua mãe, com tudo para ela. Infelizmente não foi possível uma análise mais aprofundada do sonho, pois Hebe não pôde mais comparecer à terapia.
Portanto, após os relatos da paciente, podemos encontrar uma evidência no sonho de que o apartamento é a casa dela, representa seu ego. E apesar de ser algo próprio dela, quem deu foi sua mãe, isso pode nos revelar acerca da dependência materna por parte de Hebe, que demonstra fixação em uma fase anterior do desenvolvimento, na qual podemos novamente relacionar com a Puella.
Há também um constante medo inconsciente de encarar o mundo, uma necessidade de mudar a imagem amedrontadora que a paciente tem da mãe. Hebe demonstra uma recusa de buscar desenvolvimento de auto apoio para se tornar uma pessoa apta à vida adulta, é preciso dar-se conta de que esse trabalho não pode ser realizado por sua mãe, mas sim por ela mesma e para tanto a figura do terapeuta atua juntamente nesse processo.
Sendo assim para a transformação desse padrão de Puella, é interessante que o terapeuta convide à paciente, em primeiro passo, a tomar consciência de que está fora de contato com o self, ao reconhecer e sentir a existência da mais dimensões no próprio íntimo, um poder maior que a força dos impulsos do ego, onde ainda não se tem um vínculo, que pode ser revelado nos sonhos, essa conscientização gera sofrimento e então o segundo passo refere-se à aceitação desse sofrimento, tendo por fim o último passo, perceber que, apesar da nossa fraqueza há uma força interior que acessa esse poder superior, é uma aceitação do poder do self mas que parte das escolhas da própria paciente (LEONARD, 1998).
Vale ressaltar que na clínica Junguiana, o terapeuta irá atuar como aquele que estará ali para andar junto durante esse processo, vivenciar junto com o paciente e dar o suporte buscado na terapia para que o indivíduo possa lidar com as adversidades por si só, ou seja, até que o paciente possa caminhar sozinho. O analista por sua vez deve estar em constante aprimoramento, se possível, realizar também seu próprio processo terapêutico. Acerca disso Jung (1998, p. 6) discorre que “aquilo que não está claro para nós, porque não queremos reconhecer em nós mesmos, nos leva a impedir que se torne consciente no paciente, naturalmente em detrimento do mesmo.”
Podemos reafirmar então, que os arquétipos regem nossas vidas, mesmo que não tenhamos a consciência de sua existência, ainda assim, fazem parte do inconsciente coletivo, de uma forma ou outra, entram em contato com nosso inconsciente pessoal e acabam por interagir com os complexos pessoais. A terapia sob a luz da psicologia analítica nos ajuda a entender como funcionam os movimentos de nossa psique, nossa alma, e nos convida a nos compreender melhor e a trazer os aspectos inconscientes à consciência, com o intuito de auxiliar no processo de individuação e na busca do self que é pessoal à cada indivíduo.
REFERÊNCIAS
LEONARD, Linda Schierse. Mulher Ferida, a. 3ª edição. São Paulo: Summus, 1997.
JUNG, Carl Gustav. A Prática da Psicoterapia. 6ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
VON FRANZ, Marie-Louise; HILLMAN, James. A tipologia de Jung. São Paulo: Cultrix, 1990.
VON FRANZ, Marie-Louise. Puer aeternus: a luta do adulto contra o paraíso da infância. Paulinas, 1992.