O filme Viva, A Vida é uma Festa (2017), produzido pela Disney/Pixar, narra a história de uma família mexicana atravessada por cinco gerações. Nessa trajetória, há uma regra rígida transmitida ao longo do tempo em que ninguém deve falar sobre o tataravô Héctor, que teria abandonado a esposa e a filha pequena, Inês, para seguir seu sonho de viver da música. Essa proibição molda a dinâmica familiar e chega até Miguel, o bisneto e protagonista, que se vê dividido entre a paixão pela música e a lealdade à tradição imposta pelos antepassados.
A tensão entre silenciar e recordar se entrelaça à própria tradição cultural do Día de los Muertos (Dia dos Mortos), celebração mexicana que valoriza a memória dos que já partiram. Enquanto o silêncio sobre Héctor simboliza a tentativa de apagar uma parte da história, o ritual do Dia dos Mortos reforça o oposto: a importância de manter viva a lembrança dos antepassados como elo de continuidade afetiva e identitária.
Nesse contexto, surge a figura de Inês, agora bisavó, que apresenta dificuldade em reconhecer os familiares, lapsos de memória e períodos de desconexão com o presente. Embora o diagnóstico não seja explicitado, a forma como sua condição é retratada remete a vivências comuns a quem convive com o Alzheimer. Curiosamente, em meio à proibição de falar sobre seu pai, é justamente dele que Inês se recorda, sendo a única pessoa da família capaz de reconhecer. Ao mesmo tempo, sua presença quase silenciosa, sentada em uma cadeira de rodas num canto da casa, revela o afastamento da idosa da dinâmica familiar e sugere a solidão que tantas vezes acompanha o idoso acometido pelo avanço do Alzheimer.
Além disso, a personagem de Inês coloca em destaque o impacto do Alzheimer não apenas sobre quem o vivencia, mas sobre toda a rede familiar. Estudos recentes destacam que o Alzheimer é uma condição que atravessa relações e exige reconfigurações de papéis, mobilizando cuidado, paciência e suporte emocional por parte de todos (Falcão; Burcher- Maluschke, 2009). Ao mesmo tempo, a narrativa mostra que a família pode se tornar um espaço de resgate e de cuidado, valorizando a presença, a escuta e a paciência como formas de manter vínculos. A cena em que Miguel canta para a bisavó simboliza essa força relacional: mesmo quando a memória racional falha, o afeto se torna capaz de abrir caminhos de conexão e trazer à tona lembranças adormecidas.
Outro ponto que o filme destaca e que dialoga com estudos científicos é a importância de preservar a história do idoso. Cultivar narrativas, canções, fotografias e tradições não é apenas uma forma de lembrar, mas também de manter viva a identidade de quem é acometido pelo Alzheimer, proporcionando dignidade e qualidade de vida, ao mesmo tempo em que fortalece os laços entre gerações.
Dessa forma, Viva, A Vida é uma Festa vai além de uma narrativa animada: ele oferece uma reflexão sensível sobre memória, família e cuidado. A história de Inês revela que, mesmo diante do Alzheimer e do esquecimento que ele impõe, os vínculos afetivos permanecem como potência de resistência e continuidade. Ao mostrar que lembrar é também um ato coletivo, o filme nos convida a valorizar a presença dos idosos, suas histórias e a força das relações familiares como caminhos para ressignificar a vida frente às perdas.
Referência
Falcão, D. V. DA S.; Burcher- Maluschke, J. S. N. F. Cuidar de familiares idosos com a doença de alzheimer: uma reflexão sobre aspectos psicossociais. Psicologia em Estudo, v. 14, n 4, p. 777-789, out. 2009
Mira, C. C. C. R.; Custodio, K. De A. A narrativa como construção identitária de uma pessoa com a doença de alzheimer. Trabalhos em Linguistica Aplicada, v. 61, n3, p. 747-763, set. 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1590/010318138670600v61n32022
