“O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites” – Albert Camus
Fonte: blog.questionpro.com
Ao estudar a historicidade da Ciência, Thomas Khun (1922-1996) aponta para o caráter coletivista da área, sendo que uma de suas peculiaridades é o âmbito cultural em que tal desenvolvimento [científico] se aflora. Neste processo, as gerações contemporâneas, de forma geral, sempre são beneficiadas pelo acúmulo de descobertas/modelos fornecidos por gerações anteriores, e aceitar o contexto cultural é “condição prévia para fazer ciência”.
Com esta abordagem, Kuhn lança um novo olhar para o “fazer científico”, aparentemente destoante da ideia de que tal área poderia sofrer diretamente as influências do contexto histórico-sociológico. Para Kuhn, a ciência é influenciada pelos dois fatores retratados anteriormente, mas também “o progresso da investigação modifica e desenvolve a cultura recebida”. Haveria, portanto, uma influência de “mão dupla”, onde tanto a ciência (e seu corpo científico) quanto a sociedade se nutrem/intervém mutuamente.
Neste contexto, o conceito de “Ciência Normal” apresentado por Kuhn (o oposto, portanto, do cerne da revolução científica) é fortemente influenciado pela perspectiva da “tradição”, onde o chamado “dogmatismo científico”, responsável por manter certas conquistas, acaba por ser o motor gerador da própria investigação. Assim, o cientista é inserido no dogma “transmitido essencialmente por meio dos manuais científicos”. Kuhn vem alertar, no entanto, que estes textos [contidos em livros e “manuais” científicos] “frequentemente parecem implicar que o conteúdo da ciência é exemplificado de maneira ímpar pelas observações, leis e teorias descritas em suas páginas” (KUHN, 1998, pág. 20). No entanto, de acordo com o autor, caberia aos historiadores (da ciência) “determinar quando e por quem cada fato, teoria ou lei científica contemporânea foi descoberta ou inventada”, num primeiro momento e, em seguida, “descrever e explicar os amontoados de erros, mitos e superstições que inibiram a acumulação mais rápida dos elementos constituintes do moderno texto científico”.
Vale ressaltar, no entanto, que a dimensão “dogmática” é importante na medida em que “quanto mais dogmática é a formação, tanto melhor poder-se-á reconhecer a vinculação dos cientistas à sua comunidade”. Há, no bojo das comunidades, tensões, pontos em comum e paradoxos que, o tempo inteiro, são mediados/negociados para que se mantenha dado paradigma.
Em Kuhn, a predominante “Ciência normal”, portanto, está baseada na “pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas” (KUHN, 1998, pág. 29). Estas realizações não são apenas reconhecidas, mas chanceladas por dada comunidade científica vigente, que as adotam como “fundamentos para sua prática posterior” (Idem, pág. 29). No centro da “Ciência normal” está a noção de paradigma¹, que juntamente com a própria comunidade científica representa os pilares da investigação. Sendo assim, com o paradigma, os pesquisadores, numa espécie de “consenso eficaz”, estão “de acordo não apenas sobre as descobertas já feitas, mas sobre o que resta descobrir e sobre os métodos a empregar para tanto” (COMTE-SPONVILLE, 2011, pág. 438).
Por tudo o que foi exposto, há de se observar que não é o objetivo da “Ciência normal” desvendar novas classes de fenômenos. Altamente cumulativa, tal abordagem tem no paradigma um mecanismo que acaba por “forçar a natureza a encaixar-se dentro de limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis”, assim como os cientistas não estariam “constantemente procurando inventar novas teorias”, pelo contrário, às vezes se mostram arredios diante de circunstâncias que abalem os paradigmas que defendem.
Há de se destacar que, neste ínterim, o principal “interesse da ciência normal é o aperfeiçoamento do paradigma, que consiste na determinação de fatos significativos, na harmonização dos fatos com a teoria e na articulação da teoria” (Idem, pág. 3). Desta forma, falta espaço para que novos paradigmas sejam testados, e os cientistas passam a ser vistos, frequentemente e pela visão de Kuhn, como “solucionadores de quebra-cabeças” (KUHN, 1998, pág. 57). De quebra, também não se testa o paradigma escolhido. Assim, nestas circunstâncias a principal tarefa de boa parte dos cientistas “consiste em resolver os problemas que impedem o bom funcionamento do próprio paradigma” (UCB – Aula 3, pág. 3).
“Na verdade, com a imagem mental de um quebra-cabeça, Kuhn quer mostrar que na ciência normal a solução dos problemas e as regras que devem ser adotadas para chegar a essa solução já estão definidas, antecipadamente, pelo paradigma no qual o cientista está inserido. Sem paradigma não há observação, não há problemas. Assim, toda a ciência normal é orientada pelo paradigma”. (UCB – Aula 3, pág. 3)
Realismo e Anti-realismo
De acordo com Samir Okasha (Philosophy of Science: A Very Short Introduction), há uma constante tensão acadêmica entre os filósofos realistas e os anti-realistas. Para os primeiros, “o objetivo da ciência é fornecer uma descrição verdadeira do mundo” (OKASHA, 2002, pp. 58-76). Os anti-realistas, por sua vez, dizem que o objetivo da ciência
“é fornecer uma descrição verdadeira de certa parte do mundo — a parte ‘observável’. Quanto à parte ‘inobservável’ do mundo, não faz diferença se o que a ciência diz é verdadeiro ou não”. (Idem, pp. 58-76)
Sobre a “parte observável do mundo”, de que se refere os anti-realistas, trata-se de tudo o que pode ser percebida “diretamente pelos seres humanos”, a exemplo da paleontologia, cujo objeto observável (os fósseis) são facilmente percebidos, desde que o observador esteja com a visão em condições normais. No entanto, “outras ciências fazem afirmações sobre a região inobservável da realidade. A física é o exemplo óbvio” (Idem, pp. 58-76).
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Em prosseguimento, realistas dizem que os cientistas interpretam “todas as teorias científicas como tentativas de descrições da realidade”. Os anti-realistas, por sua vez, pensam que “essa interpretação é inapropriada para as teorias que falam de entidades e processos inobserváveis” (Idem, pp. 58-76).
Frontalmente oposto ao realismo, o anti-realismo diz que o conhecimento científico não pode se resumir apenas ao que é observável. Numa de suas abordagens, [o anti-realismo] diz que
“a atitude correta perante as afirmações que os cientistas fazem sobre a realidade inobservável é a de total agnosticismo. Estas são verdadeiras ou falsas, mas somos incapazes de descobrir qual é a opção correta” (Idem, pp. 58-76).
É importante destacar que entidades inobserváveis, como a dinâmica dos elétrons, por exemplo, podem ser “empiricamente bem-sucedidas” (como defendem os realistas, no argumento do “milagre”), no entanto, os anti-realistas sustentam que “há muitos casos de teorias que acreditamos agora serem falsas, mas que foram empiricamente bastante bem-sucedidas em seu tempo” (Idem, pp. 58-76). São vários os exemplos listados ano após ano, de acordo com Okasha. Um dos exemplos usados é a teoria predominante no século XVII de que, quando em combustão, um objeto liberava “flogisto”. “A química contemporânea nos ensina que isso é falso: o flogisto é coisa que não existe” (Idem, pp. 58-76). Apesar de ser uma teoria empiricamente “bem-sucedida”, descobriu-se mais tarde que a combustão se dá “quando as coisas reagem com o oxigênio do ar”.
Sendo assim, infere-se que dados paradigmas perfeitamente acolhidos como inquestionáveis em diferentes períodos, pode sim degenerar caso novas teorias sobre o mesmo objeto se tornem plausíveis. Haveria na “Ciência normal”, portanto, assim como ocorre no movimento realista, uma supervalorização de um conjunto de paradigmas (desde que estes, aparentemente, resultem em testes e ações observáveis).
Diante de tantas contradições, os realistas acabaram por alterar um pouco a sua explicação a respeito do “argumento do milagre”. Desta forma
o sucesso empírico de uma teoria é indício de que o que uma teoria diz sobre o mundo inobservável é aproximadamente verdadeiro, ao invés de precisamente verdadeiro. Essa afirmação mais fraca é menos vulnerável a contra-exemplos da história da ciência. É também mais modesta: permite ao realista admitir que as teorias de hoje podem não estar corretas em todos os detalhes, e ainda assim sustentar que estão geralmente no caminho correto (Idem, pp. 58-76)
De acordo com Okasha, no entanto, esta posição dos realistas não reduzem a zero a possibilidade de que, com o passar do tempo (sob o crivo da análise histórica), tais teorias sejam colocadas em xeque. Assim, o argumento do “milagre” a favor do realismo encontrar-se-ia em aberto, mesmo que haja “algo no argumento que é intuitivamente muito forte” (Idem, pp. 58-76).
Ao que parece, a abordagem realista está mais de acordo com “Ciência normal”. Os anti-realistas, pelo que se percebe, abrem um leque maior de possibilidades para mudanças. No bojo deste imbróglio está a distinção do que pode e o que não pode ser observado.
Para alguns dos anti-realistas modernos, os exemplos do que pode ser “obvervável” no realismo não passam de conceitos vagos. “Um conceito vago é um conceito que tem casos de fronteira — casos em que não é claro se algo cai ou não cai sob o conceito” (Idem, pp. 58-76). Isso ocorreria por que os fenômenos, para os anti-realistas, ocorrem de forma gradativa. Bas van Fraassen, um dos maiores expoentes do anti-realismo, diz que os conceitos vagos podem ser perfeitamente usados. Mas para que isso ocorra, é necessário utilizar-se de arbitraridade, uma vez se deve impor “limites poderosos à precisão com que se pode formular dada posição” (Idem, pp. 58-76).
Subdeterminação
É importante ressaltar que, para os adeptos do anti-realismo, as teorias que os cientistas desenvolvem tendo por base a observação são subdeterminados pelos “dados observacionais”. Isso quer dizer que “os dados podem em princípio ser explicados por várias teorias mutuamente incompatíveis” (Idem, pp. 58-76). Em seu artigo, para deixar este tema ainda mais claro, Okasha explica que
No caso da teoria cinética, os anti-realistas dirão que uma explicação possível para os dados observacionais é que os gases contêm um número grande de moléculas em movimento, como afirma a teoria cinética. Mas insistirão que há também outras explicações possíveis incompatíveis com a teoria cinética. Assim, de acordo com os anti-realistas, as teorias científicas que postulam entidades inobserváveis estão subdeterminadas pelos dados observacionais — haverá sempre várias teorias rivais que podem dar conta desses dados igualmente bem (Idem, pp. 58-76)
Fonte: www.jornalmateriaprima.com.br
A perspectiva anti-realista, portanto, se contrapõe aos argumentos realistas que assumem determinadas teorias como inegavelmente verdadeiras, o que também se assemelha à dinâmica da “Ciência normal”, onde determinados problemas são colocados “de lado para ser(em) resolvido(s) por uma futura geração que disponha de instrumentos mais elaborados” (KUHN, 1998, pág. 115), numa espécie de “desinteresse” em testar novos paradigmas.
Aos cientistas da “Ciência normal”, acrescenta Kuhn, há um entrave à possibilidade de troca de paradigmas porque “decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro” (KUHN, 1998, pág. 108). E isso, como explicitado acima, está diretamente relacionado ao contexto cultural em que dada comunidade científica (ou o cientista, em particular) está inserido. Vale ressaltar que “rejeitar um paradigma sem simultaneamente substituí-lo por outro é rejeitar a própria ciência” (KUHN, 1998, pág. 109).
Okasha diz que a subdeterminação “conduz naturalmente o anti-realista à conclusão de que o agnosticismo é a atitude correta a adotar face às afirmações sobre a parte inobservável da realidade” (OKASHA, 2002, pp. 58-76). Os realistas, por sua vez, argumentam que
“daí não se segue que todas essas possíveis explicações sejam tão boas umas quanto as outras. Só porque duas teorias podem dar conta dos nossos dados observacionais não significa que não há como escolher entre elas” (Idem, pp. 58-76)
Essa explicação tendo por base a subdeterminação, diz Okasha, tem um viés tipicamente filosófico. Na prática, é raro os cientistas encontrarem “um grande número de explicações alternativas dos seus dados observacionais”. Isso não quer dizer, no entanto, que a perspectiva anti-realista não seja válida, pelo contrário. “Afinal, as preocupações filosóficas são preocupações genuínas, ainda que as suas implicações práticas sejam poucas” (Idem, pp. 58-76).
Em síntese, os anti-realistas defendem que a parte inobservável da realidade está muito além dos limites do conhecimento científico. “Assim, concedem que podemos ter conhecimento de objetos e eventos observáveis, embora inobservados” (Idem, pp. 58-76). No entanto, “as teorias sobre objetos e eventos inobservados são tão subdeterminadas pelos nossos dados quanto as teorias sobre os inobserváveis”. Por outro lado, dizem os realistas, “se aplicarmos o argumento da subdeterminação consistentemente, somos forçados a concluir que podemos adquirir conhecimento apenas das coisas que já foram efetivamente observadas”.
Considerações
Parece crível deduzir que os contrastes emergidos da obra “A Estrutura das Relações Científicas”, de Thomas Kuhn, cujo grande impacto incidiu sobretudo numa mudança de perspectiva, saindo da mera observação para levar-se em conta aspectos histórico-sociológicos, acaba por aproximar tais conclusões às recentes discussões acerca das abordagens realista e anti-realista, de que fala Sami Okasha.
O enfoque historicista de Kuhn, presume-se, por ter uma abordagem em perspectiva, portanto aberto à constantes alterações decorrentes das próprias dinâmicas histórico-culturais, está de acordo com a diretivas apontadas pelas ideias anti-realistas, para quem seus defensores devem ter postura agnóstica, tendo em vista que ao cientista/observador só é permitido conhecer parte da realidade.
O realismo, por sua vez, estaria mais próximo das considerações puramente empíricas, acumulativas e repetitivas de que trata a Ciência normal. Enquanto um – o anti-realismo – dá enfoque à imprevisibilidade decorrente da subjetividade, outro, mais formalista, tem por base paradigmas sedimentados por gerações anteriores que, sem lhe tirar o mérito, colaboram para que, pela tradição, determinado conhecimento possa ser acumulado, mantido e usado, até que pela crise surjam novos paradigmas que irão desafiar a comunidade científica.
Presume-se que tanto o realismo quanto o anti-realismo têm em comum a busca pela aproximação da verdade, sendo que o segundo pode oferecer mais possibilidades à chamada “Revolução Científica” de Kuhn, pelo seu caráter menos dogmático, mais “desconfiado”, cujo foco dividido entre o objetivo e o subjetivo abre margem para o cultivo da investigação fora (ou além) de um dado paradigma em questão.
Nota:
¹ – “(paradigme) – Um exemplo privilegiado ou um modelo, que serve para pensar. A palavra, que encontramos em Platão ou Aristóteles (parádeigma), é utilizada hoje principalmente em epistemologia ou em história das ciências […]. Um paradigma é um conjunto de das teorias, das técnicas, dos valores, dos problemas, das metáforas, etc., que, em determinada época, os cientistas de uma disciplina dada compartilham”. (COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico – São Paulo: Martins Fontes, 2011 – pág. 438)
Referências:
OKASHA, Samir. Realismo e Anti-realismo. Disponível emhttp://criticanarede.com/realismo.html – Acessado em 03/10/2014.
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico – São Paulo: Martins Fontes, 2011 – pág. 438.
O Livro da Filosofia(Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
UCB Virtual – disciplina de Filosofia da Ciência. Conteúdo disponível emhttp://moodle2.catolicavirtual.br/course/view.php?id=21966 – Acesso com se