Durante a jornada acadêmica, anos se passam e diversos professores deixam sua marca de maneiras distintas. Disciplinas variadas e conteúdos importantes contribuem para a construção da nossa visão de mundo. Com o tempo, amadurecemos, ampliamos nosso olhar e conseguimos relacionar diferentes contextos, desenvolvendo um raciocínio clínico.
Nossa mente se torna um banco de dados no qual, com o passar do tempo, conseguimos relacionar algumas variáveis. Este texto é fruto de uma dessas conexões entre conteúdos. Quero compartilhar um recorte de como a graduação tem sido uma experiência enriquecedora, somando-se a cada dia à minha vida.
O texto que trago aqui começou a ser construído quando li o seguinte relato:
“Um dia tenso. Chego ao hospital antes das sete horas, e quatro pacientes internados no andar já esperam minha visita. Não tive tempo de conversar com o médico que passou na véspera e estou atrasada. Impressionante como alguém que levanta da cama exausta consegue já estar atrasada às sete da manhã. Eu preciso ler os prontuários e entender o que ocorreu nas últimas 24 horas. A letra do colega não ajuda. Fico muito irritada. O estômago dói. Penso que deveria parar de tomar tanto café.
Entro no primeiro quarto: mulher, 39 anos, divorciada. Um filho adolescente ainda dorme profundamente no sofá de acompanhante. A mulher geme. Ela tem câncer metastático de pulmão. Não era tabagista. A dor está muito intensa ainda, apesar de utilizar uma bomba de morfina há três dias. Está difícil encontrar a dose ideal do analgésico, pois ela tem muita sensibilidade aos efeitos colaterais. Por um instante, olho a cena de um ponto de vista novo. Observo a mulher e, de repente, me transformo nela”. (ARANTES, 2019 p 42-43)
Esse trecho em específico retrata a intensa rotina de uma médica, uma realidade que muitos profissionais de saúde enfrentam em diferentes contingências, esse recorte chamou minha atenção devido a uma série de fatores, todos relacionados à minha jornada na graduação de Psicologia. No primeiro semestre de 2023, cursei a disciplina “Psicologia e Saúde em Diferentes Contextos”. Foi lá que ouvi pela primeira vez o termo “fadiga de compaixão”. Lembro-me de ficar intrigado e me questionar: “Como é possível que profissionais da saúde, que se dedicam tanto, possam ficar fatigados ao ter compaixão pelo outro?”. Hoje, percebo que esse questionamento refletia minha imaturidade e falta de compaixão em relação a esses profissionais.
Durante essa disciplina, ficou mais claro para mim a ocorrência desse fenômeno e sua natureza frequente e triste na vida desses profissionais; pessoas que se doam tanto que já presenciaram tantas formas de sofrimento que desenvolvem uma resistência a ele, chegando ao esgotamento. O livro de Ana Claudia Quintana Arantes aborda esse fenômeno da seguinte forma:
“A fadiga de compaixão ou estresse pós-traumático secundário ocorre preferencial- mente com profissionais de saúde ou voluntários que têm a empatia como principal ferramenta de ajuda. Pessoas que lidam com tanto sofrimento que acabam por incorporar a dor que não lhes pertence”. (ARANTES, 2019 p 41).
Passado um ano dessa disciplina, cheguei ao primeiro semestre de 2024, e como a grade curricular da minha universidade é flexível, algumas disciplinas indicadas para períodos específicos podem ser cursadas em outros momentos. Isso aconteceu comigo em relação à disciplina “Psicologia do Desenvolvimento II”, que é do segundo período e eu cursei no quinto semestre. Nessa disciplina, foi proposta a leitura do livro de Ana Arantes, o mesmo mencionado na aula de Psicologia e Saúde. Ao reler o livro, memórias e aprendizados anteriores voltaram à tona, mas agora foram encarados de outra maneira, tanto por ter passado por outras disciplinas quanto por estar cursando outra que ampliou meu olhar em relação ao outro.
A disciplina “Psicologia do Trabalho” tem abordado o contexto de intensificação e precarização do trabalho, questões que têm me sensibilizado e deixado mais atento a detalhes que se relacionam. Os relatos da médica e o fato da fadiga de compaixão estarem ligados à intensificação do trabalho e às altas demandas, vinculadas à responsabilidade de lidar com a vida humana, foram aspectos que se entrelaçaram em minha compreensão.
A relação entre a fadiga de compaixão e a intensificação do trabalho dos profissionais de saúde é complexa e muitas vezes subestimada. Com a crescente demanda por serviços de saúde, esses profissionais enfrentam uma carga de trabalho intensa, muitas vezes em mais de um local, combinada com a responsabilidade de lidar com o sofrimento humano diariamente.
A intensificação do trabalho na área da saúde vai além da carga horária ou da falta de recursos. Refere-se também à pressão por produtividade e eficiência, que muitas vezes sacrifica o bem-estar dos profissionais. Isso se traduz em jornadas longas, recursos limitados e uma carga emocional pesada ao lidar com o sofrimento humano. Além disso, a sobrecarga cognitiva e física dos trabalhadores pode levar à exposição a riscos e à deterioração da saúde. Em momentos de alta demanda, como em situações de emergência, o risco de acidentes aumenta. Conciliar rapidez e atenção com cuidado na execução das tarefas torna-se um desafio, principalmente quando o foco é garantir o restabelecimento das condições clínicas do paciente, pois existe uma alta demanda de pessoas que precisam ser atendidas, pessoas que estão em sofrimento, e a responsabilidade urgente de lidar com esse sofrimento, é direcionada para esse profissional. (FERNANDES et.al 2014)
Ana Arantes trás uma fala em seu livro que se relaciona com essa contingência de intensificação do trabalho dos profissionais da saúde:
“Parece que cai bem socialmente dizer que você não teve tempo de almoçar, não teve tempo de dormir, não teve tempo de mexer o corpo, de rir, de chorar – não teve tempo de viver. A dedicação ao trabalho parece estar ligada a um reconhecimento social, a uma forma torta de se sentir importante e valorizado; tudo à sua volta tem a obrigação de entender que o mundo só pode girar se você estiver empurrando”. (ARANTES, 2019 p 38)
Para lidar com a fadiga de compaixão, muitas vezes ocorre o distanciamento afetivo, no qual se tenta separar as emoções do trabalho para evitar o esgotamento emocional. No entanto, essa abordagem pode levar à desconexão emocional e à redução da qualidade do cuidado prestado. Por isso, muitas vezes os profissionais da saúde parecem rudes, já que viram tanto sofrimento que desenvolvem uma tolerância ou se afastam das emoções das pessoas para se protegerem.
Diante desses diferentes contextos, percebo como é essencial que os sistemas de saúde reconheçam e abordem a fadiga de compaixão, fornecendo apoio emocional e recursos adequados para os profissionais, mostrando-lhes que também podem ser cuidados. No entanto, é importante que esses profissionais estejam conscientes da importância de cuidar de si mesmos. Como afirmado por Ana Claudia Quintana Arantes (2019 p. 38), “minha vida ficou mais plena de sentido quando descobri que tão importante quanto cuidar do outro, é cuidar de si”.
REFERÊNCIAS:
ARANTES, Ana Claudia Quintana. A morte é um dia que vale a pena viver. Sextante, São Paulo:, 2019.
FERNANDES, R.C.P., LIMA, M.A.G; ARAÚJO, T.M. Tópicos em saúde, ambiente e trabalho: um olhar ampliado. UFBA, Salvador:, 2014