Sobre Morte e Bem-te-vis

A meu avô Epifânio, que parece que ainda vive.

A meus pais, que me ensinam a envelhecer.

A meu amigo Ventura, que escolheu a hora e a forma de morrer.

Fonte: Google Imagens

Lembro-me de repente de quando era criança e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu (não sendo consciente) era a vida. Via a manhã e tinha alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste. A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por trás dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de aparecidas. Sim, outrora eu era de aqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

É difícil, muito difícil falar sobre o envelhecer. Difícil e inútil… Falar sobre o envelhecer é uma outra forma de falar da morte e é também, sobretudo, envelhecer e morrer um pouco. Não falar é também morrer. Morre-se simplesmente, a toda hora, aqui, em um outro lugar… Ingênuos, corremos dessa realidade e – ao dela corrermos – morremos e envelhecemos, talvez ainda mais.

Tenho, aqui, a difícil pretensão de falar, ainda que muito superficialmente, sobre esse temido e desconcertante tema. Mas sei que, por mais que tente, apenas falarei de meu próprio processo. Não pretendo generalizações, mas certamente me trairei, pois algo como a própria morte nos assusta tanto que, sem dúvidas, querendo ou não, cairei em pequenas armadilhas linguísticas. Aliás, acabei de ficar preso na primeira delas: melhor seria dizer que a morte me assusta, no lugar de nos assusta, como acima mencionei. Em relação a isso, sei quase nada de mim e nada dos outros, portanto, o pronome no plural é certamente uma maneira de não olhar muito tempo ou muito diretamente para uma luz que, de outra forma, me cegaria.

Desconfio que, a esse respeito, qualquer texto que não parta tão somente da experiência das próprias senectude e morte são vãs palavras e tentativa vã de se escapar do pessoal e intransferível morrer.  É por isso que vejo mais riqueza no velho do que naquele que dele fala. O primeiro encara – da forma como lhe é possível – sua morte, este se defende da dele através de intrincadas construções discursivas. Portanto, é possível que o que aqui se venha a dizer não terá qualquer utilidade para os que lerem este texto. Mal e mal, será de algum uso para mim mesmo.

Recentemente, ao publicar, em uma rede social, um pequeno texto sobre  a morte e o envelhecer (dito esteja: meus, sempre meus) aconteceu algo curioso e este é o motivo que me faz, agora, querer falar algo mais sobre isso.

Apenas para contextualizar, transcrevo abaixo o que na ocasião escrevi e que causou, em alguns, certa comoção:

Tenho, ultimamente, pensado muito a respeito de minha morte. Não sei porque isso me ocorre às vezes, mas sei que – de nenhuma forma – isto me é agradável. Sei também que se morre todos os dias, mas há épocas em que sinto tão aguda e vivamente, em mim, meu gradativo processo de morrer, que me é impossível já não sentir também minha lenta e irreversível aniquilação física. Um dia, pela manhã, olho-me no espelho e, de repente, meus braços já não são os mesmos, a força de minhas pernas se esvaiu um pouco, meus cabelos mudaram juntamente com minha pele, meus olhos já não vêem o que antes viam, tenho marcas no rosto, pareço cansado. Em épocas como essa, estranho-me por inteiro e meu próprio nome, quando o pronuncio em voz alta, já não me é familiar. Quase não sei o que realmente restou de mim naquela estrangeira figura refletida no espelho. Penso no tanto que morri e no quanto matei. Penso também que minha hora se avizinha, que meu fim me acena e que a moça Caetana me espera na próxima esquina, pois o mundo já não me dá o doce conforto de sua familiaridade. E nessa fase, tudo, tudo é dúvida e estranhamento… Tudo é morte e, exatamente por isso, tudo é vida.

Algumas pessoas que leram a publicação ficaram mobilizadas, confortaram-me, sugeriram-me Deus etc. e, por fim, alguns amigos com quem há muito não falava me ligaram para saber como eu estava. Não posso deixar de agradecer a essas pessoas que, preocupadas, mostraram – cada um a sua forma – sua solidariedade. Este texto vai para elas, embora, como antes disse, talvez não lhes vá de nada servir.

Falar de envelhecimento é dizer de morreres… Todos estes pequenos morreres que a vida nos dá a farta bandeja e cotidianamente. A morte… A morte é dona de tudo, dizia Estamira (do documentário de mesmo nome, com a direção de Marcos Prado).

É estranho pensarmos no envelhecimento (e, por consequência, na morte) apenas quando estamos, cronologicamente e no que se convencionou chamar, velhos. Ingênuos novamente, não percebemos que  começamos a envelhecer quando viemos ao mundo (quem sabe antes?). Nascer é também envelhecer e, portanto, começar a morrer. Pergunto-me se não nascer também o seria, mas creio que tal questão vai muito além de minha compreensão. Deixo-a aos que dela entendem ou dizem que o fazem…. Mas devo confessar que me é muito difícil pensar em um envelhecer antes de um existir fisicamente. Contudo, envelhecer me fez incorporar a mim a característica de perceber que não sei sobre a maior parte das coisas do mundo.

Saber que não se sabe é um ponto importante do envelhecimento e isto tem tantas implicações que seria difícil, neste pequeno surto catártico-tanatológico, explicitar. Sim, tenho percebido, ao envelhecer, um certo respeito pelas coisas sobre as quais não sei e, ainda mais, uma desconfiança muito séria a respeito daquilo que imagino saber. Envelhecer é saber-se ignorante, é perceber que há mais beleza no que se ignora do que naquilo que se sabe. É mister que se diga que aqui não estou  a falar de uma ignorância  pura, simples, dada e marcada pela falta, mas a de um tipo que traz a marca da abundância e que só é adquirida através do exercício diário de morrer e de ser velho. Ou seja, refiro-me a uma ignorância a que, por falta de melhor nome, chamaria de cultivada. É preciso ser velho e saber cultivar a morte para cultivadamente ignorar.

Foto: Mardônio Parente

Há quem diga que há sabedoria nisso. Não estou muito certo a esse respeito, mas sei que nisso há angústia. Saber lidar com essa angústia é envelhecer, mas não saber também o é. Portanto, há apenas de se escolher (pois outra alternativa não há) que tipo de cotidiana morte se quer vivenciar.

Quanto a mim, envelhecer e morrer tem sido me deparar com minha pequenez diante do mundo, do tempo, da vida. Saber-me pequeno me leva ao exercício diário da humildade, aquele velho conceito que adquiriu, em nossa cultura, infelizmente, um aspecto quase completamente religioso. Envelhecer me mostra, mesmo que boa parte das vezes eu não consiga ter olhos para ver, que nós, bichos imperfeitos que somos, levamo-nos a sério demais. Mesmo sabendo que a morte nos ronda e que na próxima esquina a linda moça Caetana poderá nos beijar,  levamo-nos sempre em alta conta, como se indestrutíveis fôssemos.

Sabendo-me ignorante e pequeno, envelhecer – por consequência –  fez-me perceber, no outro, alguém que participa comigo desta insólita aventura errante: eu e ele presos a um minúsculo planeta de destino incerto. Embarcados nesta pequena nau esférica, em uma trágica travessia sem portos, vagando em um espaço-oceano infinito em tamanho e incertezas, eu e o outro, irmanados.

Fonte: Google Imagens

Envelhecer é também lidar  diferentemente com o tempo. Cronos, esse senhor, ao contrário do que possa parecer aos mais jovens, em geral, não aflige demais os velhos. Estes, já saturados pelo tempo, aprendem a metabolizá-lo de uma forma diferente. As marcas que os anos deixam no corpo, por exemplo, não são apenas os da degeneração física, mas – sobretudo – as cicatrizes que indicam como cada um digere o tempo, metaboliza-o.

Eu, por mim, tenho uma história (ou penso ter uma) para cada pequena marca que percebo em mim. Meus cabelos brancos, no tempo em que ainda era possível contá-los, tinham cada um deles um nome e, como tudo que tem um nome, uma história. Este pequeno pelo esbranquiçado em minha fronte, resultado de sonolentas aulas, é Ana; aquele, fruto de todas as monótonas cerimônias  de que já participei, é Bete; e assim por diante. Hoje, pela quantidade deles, já não é mais possível lhes dar a atenção merecida ou lhes pôr um nome. Minha atenção, quando se volta para isso, mantém-se tão apuradamente às voltas com os outros brancos fios mais as pequenas cicatrizes, rugas etc. (todos com suas diminutas biografias) que já não me é possível nominá-los, saber suas histórias, sequer contá-los.  Todavia, imagino que cada um deles, velhos que são, compreendem minha ausência, pois já não dou conta de relatar assim, de forma tão pessoal, cada uma das histórias que eles simbolizam e que me constitui como gente.

Sim, os velhos (eis outra característica do morrer) são mais compreensivos. E é importante que se diga que isso, embora parte das vezes leve a uma maior aceitação dos fatos da vida (e da morte), não quer dizer que os velhos entendem melhor as coisas. Compreender, aqui, vai no sentido de abranger. Os velhos compreendem exatamente no mesmo sentido em que – por exemplo – um estado compreende várias cidades. É neste sentido em que digo que os velhos são mais compreensivos. Outra forma de dizê-lo seria falar que os velhos são mais abrangentes.

Fonte: Google Imagens

Ser compreensivo, no sentido que dou ao termo, não raro, leva os velhos à não aceitação e à intolerância, pois – por vezes – é necessário compreender (ser abrangente) para saber da inutilidade e da futilidade de grande parte das coisas que aí estão. Quando, dentro de nós, abrangemos coisas (e todos os dias abrangemo-las mais), necessariamente, ligamo-las umas às outras. A consequência disso é percebê-las em suas relações intrínsecas, permitindo que se construa intimamente um grande quadro de produção de sentidos cada vez mais interligados. Em outras palavras: envelhecer é como, de repente, deparar-se com uma grande revelação. Recentemente, ouvi uma história, relatada por um amigo, que ilustra, de forma algo jocosa, esse tipo de compreensão do velho.

Um homem idoso teria entrado em uma loja para comprar uma camisa. Depois de escolher a roupa, a prestimosa vendedora ofereceu-lhe mais duas ou três peças. Depois de o velho negar algumas vezes as ofertas da moça e depois de a mulher insistir outras tantas, o homem, algo irritado, diz: Não quero, minha filha. Quero apenas uma camisa. Eu só tenho um corpo.

Morrer é também ir em direção à simplicidade: comprar apenas uma camisa, ter apenas um corpo… Tudo o mais que se diga é vão, diante da inegável realidade deste meu único e perecível corpo. E é por isso que agora encerro este texto.’

A rigor, não há sentido em continuar a escrever sobre o morrer enquanto o Sol ainda me brilha, um bem-te-vi canta estridente à minha janela – como se cantasse para mim – e a vida (quem sabe a morte) me chama do lado de fora.

Fonte: Google Imagens