A origem psicanalítica da neurose
Ao estabelecer uma definição para neurose, Mijolla (2005) define o fenômeno como um transtorno psíquico sem substrato anatômico detectável. De acordo com o autor, a sintomatologia neurótica está intrinsicamente relacionada à expressão simbólica de um conflito intrapsíquico entre ideias fantasmáticas inconscientes, associadas ao complexo edípico, e as defesas que elas provocam, que possuem raízes na história infantil do sujeito.
De acordo com Doron e Parot (2001), atualmente a neurose abrange os distúrbios mentais caracterizados por comportamentos que só afetam um setor limitado da atividade, sem relação, pelo menos aparente, com as motivações instintivas e sociais habituais. Neste sentido, o sujeito não vê sua finalidade, mas reconhece seu caráter anormal, podendo, porém, livrar-se dela voluntariamente. Teixeira (1999) afirma que a neurose está diretamente ligada ao recalque do inconsciente, ou seja, este é o resultado de repressão do ego sobre o material confinado no id (material recalcado).
Sob a perspectiva psicanalítica, Zimerman (2008) ressalta que a estrutura neurótica está relacionada ao fato do sujeito apresentar algum grau de sofrimento e de adaptação em alguma ou mais áreas importantes de sua vida, tais como: a familiar, a social, a sexual ou a profissional. Fica evidente, também, o seu permanente e predominante estado mental de bem ou mal-estar consigo próprio, de maior ou menor autoestima.
No entanto, para Bion (1957, apud ZIMMERMAN, 2008), o sofrimento e o prejuízo, em alguns casos, podem alcançar níveis de gravidade. Os indivíduos neuróticos sempre conservam uma razoável integração do self, além de uma boa capacidade de juízo crítico e de adaptação à realidade, não obstante o fato de que, em algum grau, sempre existe em todo neurótico uma “parte psicótica da personalidade”.
De acordo com a ótica de Lacan (1995-1956/1985 apud CASTRO, 2015), na psicose a angústia é vivida como uma invasão, a partir de fora, com uma experiência de excesso de presença – excesso da presença do gozo do Outro –, enquanto que na neurose, essa angústia é invadida a partir de dentro, como uma experiência de excesso de falta. Partindo das ideias de Calligari e Contardo (1989), qualquer tipo de estruturação do sujeito, seja neurótica ou psicótica, é uma estruturação de defesa.
A neurose para a Gestalt-terapia
Conforme Ribeiro (1985), Perls (1893-1970) fala sobre a inspiração fenomenológica-existencial como uma das bases para a Gestalt-Terapia. Utiliza-se o método fenomenológico ancorado em filósofos como Husserl, Nietzsche, Buber e, posteriormente, Heidegger, com sua analítica existencial. Estas influências são indiscutíveis, acoplando, ainda, outras correntes de pensamento, como a Psicologia da Gestalt, a Teoria Organísmica e todas as influências intelectuais que formam a Gestalt-Terapia.
Para os Gestalt-terapeutas, a percepção que cada indivíduo tem sobre si próprio sempre está afetando suas outras maneiras de agir, controlando, assim, sua forma de enxergar e contatar a realidade. Dessa forma, quando um homem busca soluções para poder satisfazer suas necessidades, ou, ao invés disso, ele deixa de lado o que não é seu ou que não considera como sendo beneficente à sua vida, pode-se afirmar que ele tem um funcionamento sadio, já que está realizando o melhor que pode de acordo com o que lhe é oferecido. A isso chamamos de ajustamento criativo.
O conceito de “ajustamento criativo” foi usado por Frederick Perls para descrever a natureza do contato que o indivíduo se mantém na fronteira do campo organismo/ambiente, visando à sua auto regulação sob condições diversas. O qualificativo de “criativo” refere-se ao ajustamento resultante do sistema de contatos intencionais que o indivíduo mantém com seu ambiente, diferenciando-o do sistema de ajustamentos conservativos desenvolvidos dentro do organismo, o qual constitui a maioria das funções reguladoras da homeostase fisiológica (D’ACRI; LIMA; ORGLER 2007, p. 20 apud PHG, 1997).
Pode-se ainda, afirmar que o ajustamento criativo é o método pelo qual a pessoa sobrevive e cresce, atuando de forma a se manter ativa e responsável, providenciando seu próprio desenvolvimento, suas necessidades físicas e psicossociais (D’ACRI; LIMA; ORGLER, 2007). O psicoterapeuta precisa encontrar o valor criativo frente resistências que podem surgir, pois, pode-se entender os conflitos internos, como conflitos da própria “existência” do organismo com o social (GALLI, 2009).
As relações que mantemos com as pessoas, são de extrema importância para o desenvolvimento de quem somos, do que almejamos, no que acreditamos. Nisto, quando se inicia um conflito nessas relações, atitudes incompatíveis, constituem a natureza da neurose, que indicam perturbações humanas (GALLI, 2009).
Como produto de uma cultura diferenciada dos tempos passados, o indivíduo hoje vive para o trabalho, para a corrida encontrada na concorrência, para o cansaço e para o estresse. Com isto, o indivíduo se vê sempre frágil, deprimido, estéril para o pensamento. “As pessoas não se interrogam mais sobre sua própria existência” (GALLI, 2009, p.64) nisto, a neurose é uma resposta do indivíduo para os acontecimentos, desenvolvida em um contexto. “Tudo o que acontece no corpo de um ser vivo é a expressão do padrão correspondente de informação, ou seja, é a condensação da imagem correspondente” (GALLI,2009, p.67).
Romero (1997), afirma que o indivíduo ao internalizar a figura do outro, caracteriza a essência da existência humana, originando aí a problemática relacionada à patologia.
O sujeito neurótico internalizou a figura do outro como uma presença dominante, perante a qual o próprio sujeito se posiciona como ente secundário. Isso significa que para o neurótico o outro tem demasiada presença. O neurótico está tão habitado pelo outro que quase sempre precisa tomar providências, tendo que apelar para truques no sentido de conquistar um espaço suficiente para ele mesmo nesse mundo (ROMERO, 1997, p.165).
A neurose é um processo de repetição constante de mecanismos neuróticos e não um processo espontâneo de auto regulação. Para manter um ajustamento saudável, é necessário criar, estar em contato, gerar novidades. Esta possibilidade de ajustamento vai perdendo-se no indivíduo que apresenta comportamentos neuróticos. O contato da pessoa consigo própria e com os elementos do meio (ambiente físico e social), fica prejudicado de forma que: desiste, muitas vezes de buscar a satisfação; passa a não discriminar o que realmente é importante para si; perde seu auto- suporte e se orienta pelas referências externas; não percebe o óbvio; não consegue mais entrar em contato com seus sentimentos e emoções; perde a espontaneidade no modo de ser e agir, passando a não ser mais criativo (LIMA, 2009 apud PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997).
Intervenções à luz da fenomenologia existencial
O desenvolvimento e o funcionamento saudável do self depende, desde os primeiros anos de vida, de um contato com o outro com qualidade, já que o self e a personalidade se organizam no contorno entre organismo e meio. Perls (1973/1981) acreditava que a neurose, em suma, é a falta de visualizar e/ou nutrir um equilíbrio do indivíduo com o seu entorno. Eles sentem a necessidade de distanciar-se do mundo, evitando qualquer esmagamento proveniente do externo. Em outras palavras, “os limites do meio se estendem demais sobre si mesmo” (TENÓRIO, 2012, p. 225).
Percebe-se, diante do exposto, que se a interação estiver comprometida, logo a tendência é agravar esse distúrbio. Em seu livro, “Gestalt Terapia Explicada”, Perls (1977) descreve a respeito da importância da relação organismo-natureza:
Este é o motivo pelo qual chamamos a nossa abordagem de existencial: nós existimos como um organismo, como um molusco, como um animal, e assim por diante, e nos relacionamos com o mundo exterior como qualquer outro organismo da natureza. […] Não se pode separar organismo do ambiente. […] Assim, temos que sempre considerar o segmento do mundo em que vivemos como parte de nós mesmos (p. 20 e 21).
Se a relação entre organismo-meio for interrompida, não há ajustamento criativo, mas, sim, ajustamento conservativo, que não satisfaz as necessidades do organismo e não transforma o meio. Se não há ajustamento criativo, o neurótico luta, basicamente, pela sobrevivência, abre mão de seus verdadeiros objetivos. O processo de ajustamento criativo é essencial para o desenvolvimento da função do self, pois autorregula e tem por objetivo atender as demandas/necessidades do indivíduo, potencialidades transformadas na relação plena entre organismo e meio. Dito em outros termos, “o self é um ‘eu’ relacional, processual e consciente” (TENÓRIO, 2012, p. 225).
Sobre isso, e de acordo com Ginger (1995), a teoria de Perls dá muita importância às necessidades fisiológicas orais e cutâneas (fome e necessidade de contato), fundamentais à sobrevivência individual e anteriores à pulsão sexual propriamente dita.
A neurose é consecutiva à soma das ‘‘Gestalts inacabadas’’, ou seja, às necessidades interrompidas ou insatisfeitas, mais do que aos desejos proibidos pela sociedade ou recalcados pela censura do superego ou do ego. A neurose nasceria então, essencialmente, de um conflito entre o urxunismo e seu meio (a mãe, o pai, os outros) e, por isso, revela-se principalmente na fronteira de contato entre o indivíduo e o meio em que vive (p. 65).
Ribeiro (2006), traz em sua obra que o gestalt-terapeuta é alguém que acredita na potencialidade do indivíduo, que, através do contato, este auxilia o paciente a voltar-se cada vez mais para si, percebendo-se no mundo como um ser de possibilidades. Portanto, “o terapeuta deve estar atento e perceber o cliente em sua inteireza” (p. 94), promovendo um contato de qualidade que reverta tal distorção psíquica. De forma mais clara, a técnica utilizada pela Gestalt-Terapia deve levar o cliente a um contato positivo e criativo com o mundo externo e consigo mesmo, levando-o na direção de suas necessidades e a movimentar-se no sentido de satisfazê-las (RIBEIRO, 2012).
Contudo, o paciente deve empenhar-se na terapia, pois, assim, conseguirá preencher os buracos da personalidade, tornando-se inteiro e completo. O trabalho psicoterapêutico é demorado, contudo promove o potencial humano e seu desenvolvimento (PERLS, 1977). A partir dos trabalhos de Reich e Perls, ao buscarem ampliar soluções para a neurose, Ribeiro (2012) destaca a importância de trabalhar a frustração em pacientes neuróticos. O autor salienta que:
Perls afirmava que o crescimento acontece através da frustração e que o psicoterapeuta deve ser uma mistura de simpatia e frustração. Ele deve dar suporte e frustrar ao mesmo tempo. Ele deve frustrar o cliente, fazendo-o ver suas formas de manipulação, seus modelos neuróticos de comportamento, sua percepção de seu autoconceito, de modo que ele se sinta incomodado nas suas verdades solidificadas. Ele deve chamar o cliente para uma visão realista de sua realidade podendo, às vezes, ser cruel para ser, de fato, bom (p. 175).
Ribeiro (2012) aponta que a frustração se apresenta na linguagem, no corpo, nas atitudes, e, seguindo estes mesmos caminhos que ela se instalou no indivíduo – desfrustrar o corpo e a linguagem –, consegue-se levar a pessoa à formação de novas gestalts, à autorregulação, possibilitando, assim, que o comportamento desse sujeito se torne saudável.
Há uma forma que os neuróticos encontraram para “resolver” seu problema: Ajustamento Neurótico. Granzotto (2007) explica que esses ajustamentos são soluções criativas no sistema self para dar conta dos excitamentos e da ansiedade (co-presença de uma inibição reprimida). Trata-se de uma “ampliação” dos recursos de ajustamentos criadores”. Granzotto (2007) apresenta o que os fundadores da Gestalt-Terapia propõem como forma de intervenção nos ajustamentos neuróticos:
- Em um dado momento, provoca-se “emergência segura” de condições ansiogênicas, para que ele responda, por meio ajustamentos neuróticos, até que uma reação desvista a inibição reprimida e o excitamento inibido.
- Noutro momento, estabelece fundos de experiência, permitindo que o ego crie formas de ajustamento mais além do que é imaginário e/ou reprimido.
Galli (2009) finaliza dizendo que a atuação em pela perspectiva fenomenológica existencial acredita na cura como a implementação daquilo que está faltando, baseado na premissa de expansão da consciência. Não é propriamente solucionar o problema em si, mas entrar em contato com o consciente, para que, com isso, o indivíduo decida.
Na neurose, ocorre um distúrbio da fronteira e das funções do self, processos estes que são oriundos de distorções primárias e secundárias, influenciando percepções negativas e positivas do indivíduo consigo e com o outro. Se essas fronteiras e funções do self estiverem em falência ou em estado de vulnerabilidade, essa psicopatologia culminará em transtornos psicóticos (TENÓRIO, 2012). O neurótico, ao ter a percepção distorcida de si e do outro, se mostra frágil e confuso, pois sente o sofrimento. Este indivíduo, por não conseguir encontrar saídas para a resolução do problema, vivência uma realidade vez mais insuportável.
Por fim, faz-se necessário mais estudos dentro da perspectiva fenomenológica existencial, fazendo com esses estudos nessa perspectiva somem, auxiliem e melhor intervenham no trabalho aos pacientes neuróticos, evitando seu agravo dentro das psicopatologias como distúrbios da função do self.
REFERÊNCIAS:
CALLIGARIS, Contardo. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
CASTRO, Júlio Eduardo de: A presença do objeto a na neurose e na psicose e o desejo do psicanalista. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, 2015
D’ACRI, Gladys; LIMA, Patrícia; ORGLER, Sheila. Dicionário de Gestalt-terapia: “Gestaltês”. São Paulo: Summus Editorial, 2007.
DORON, Roland; PAROT, Françoise. Dicionário de psicologia. São Paulo: Ática, 2001.
GALLI, Loeci Maria Pagano. Um olhar fenomenológico sobre a questão da saúde e da doença: a cura do ponto de vista da Gestalt terapia. Estudos e Pesquisas em Psicologia. UERJ, RJ, Ano 9, N.1, P. 59-71, 1° semestre de 2009. Disponível em: <http://www.revispsi.uerj.br/v9n1/artigos/pdf/v9n1a06.pdf>. Acesso em: 28/04/2016
GINGER, Serge e Anne ginger. Gestalt, Uma Terapia do contato. 4ª ed. São Paulo: Summus Editorial Ltda, 1995.
LIMA, Patrícia Albuquerque. Criatividade na Gestalt–terapia. Estudos e Pesquisas em Psicologia. UERJ, RJ, Ano 9, N.1, P. 85-95, 2009. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812009000100008> Acesso em: 29/04/2016.
MIJOLLA, Allain. Dicionário Internacional de Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2005. v.1 e v.2.
MÜLLER-GRANZOTTO, Marcos José; MÜLLER-GRANZOTTO, Rosane Lorena. Fenomenologia e Gestalt-terapia. Ed. Summus. São Paulo, 2007.
PERLS, F. S. Gestalt-terapia explicada. [compilação e edição da obra original de John O. Stevens; tradução de George Schlesinger]. – São Paulo: Summus, 1977.
RIBEIRO, Jorge Ponciano. Gestalt Terapia: refazendo um caminho. São Paulo: Summus, 1985.
RIBEIRO, Jorge Ponciano. Gestalt-Terapia: refazendo um caminho. Ed. Summus. São Paulo, 2012.
RIBEIRO, Jorge Ponciano. Vade-mécum de Gestalt-Terapia Conceitos Básicos. Ed. Summus. São Paulo, 2006.
ROMERO, E. O Inquilino do Imaginário: Formas de Alienação e Psicopatologia. São Paulo. Lemos Editora,1997.
TEIXEIRA, T. S. Delírio, fantasia e devaneio: sobre a função da vida imaginativa na teoria psicanalítica. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., v. IV, n. 3, p. 67-88, 1999.
TENÓRIO, Carlene Maria Dias. As Psicopatologias como Distúrbios das Funções do Self: uma construção teórica na abordagem gestáltica. Revista da Abordagem Gestáltica – XVIII(2): 216-223, jul-dez, 2012. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rag/v18n2/v18n2a13.pdf>. Acesso em: 26/04/2016.
ZIMERMAN, David E. Manual de técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artmed, 2008.