Porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade. Quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida, não pode imaginá-la. Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso, não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz, cuja obra termina depois de cada notícia, como se fora para sempre, mas que não concede um instante de paz enquanto não torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte.”– Gabriel García Marquez
Eu estou sendo jornalista há pouco mais de um ano. O perdão pelo gerúndio descarado logo na primeira sentença deste texto virá com a explicação de que para mim, ninguém é jornalista, ninguém “é”, em um sentido de completude, em uma profissão, que, como o jornalista colombiano Gabriel García Márquez bem definiu, “torna a começar com mais ardor do que nunca no minuto seguinte”.
No meu fazer diário, na minha rotina, na esperança e no medo que me acompanham, diuturnamente, eu estou sendo jornalista. Dá vontade de ser astronauta, de ser ponta direita do Botafogo, de ser Rei e de ser malabarista, dá vontade de ser sério, de ser regrado, de ter horário, de não ver, de deixar para lá, de esquecer, de voltar e de mudar, dá vontade de um monte de coisa e não dá vontade de nada.
Dá até vontade de escrever em primeira pessoa, coisa que seria tirar o jornalista, escravo do relato, de seu território. Calha que esse texto é justamente sobre isso, sobre desterritorializar. Vou sendo então jornalista, mas desjornalizado.
Eu acordo, ligo o computador, busco café, bebo o café e vejo as notícias, leio o que já sei, leio o que não sei, leio o que nunca vou saber. Me encanto pelo começo, morro de tédio no meio e acho um absurdo no fim, levanto, almoço, converso, dirijo. Boa Tarde! Trabalho!
Leio jornais, revistas, panfletos, livros, bulas, anúncios, rabiscos, grafitis, e leio televisão, leio rádio leio falas, rostos, choros e gritos. Estar sendo jornalista me impede de deixar de ler, e eu gosto disso.
Escrevo com aspas, escrevo sem aspas, escrevo no futuro – para adiantar a novidade, escrevo no passado – para mostrar que o fato existe, escrevo no presente como obrigação maior que tudo. Quando escrevo leio de novo, depois outros leem.
Ando nas ruas, encontro pessoas, falo com pessoas, pergunto da vida, da escola, do trabalho, da rotina, da leitura, da comida, do preço, dos segredos, da alegria, da tristeza, da morte, pergunto se ofende, se responde, se reclama, se dói, se esquece, se mudou, se ficou, se deixou, se tramou, se fechou, se abriu, se vai concertar, se vai prevenir, se vai procurar, se vai descobrir.
Penso em fotos, fatos, figuras, formações, falcatruas, em maneiras, mentiras, momentos, matrizes, mercadorias, medidas, penso em pautas, em pontos, em programas, em pílulas, em posturas, em palavras, em porquês, em como, quando, onde, quem. Eu faço, corro, canso, grito, falo, pergunto, replico e treplico.
Eu sento, olho no relógio, olho para a página em branco, olho para o texto rabiscado as pressas, olho para os dedos, levanto, bebo água, bebo café e depois bebo água, eu sento, eu olho para o relógio e escrevo : “Morte em estradas têm alta no carn-“ eu apago, eu escrevo: “Aumentam mortes em estr”, eu apago e escrevo “Estradas do Tocantins, têm alta em-“, eu levanto, eu olho pela janela, eu sento e escrevo “Mortes em estradas aumentam”.
20 linhas, 25 linhas, 30 linhas, abre aspas, Nós acreditamos que a falta de prudência dos motoristas aliada a péssima condição das estradas contribuem para a alta taxa de acidentes com vítimas fatais nessa época do ano, fecha aspas. Dados, números, contagem, fala de vítima não fatal, fala de familiar em velório, fala de prefeito, ex-prefeito, policial, testemunha. Fecha, corrige, apaga, conserta, troca, muda, repõe, assina, entrega. Vê a foto, aumenta a foto, meia página, título, olho, assinatura.
Daí vou para casa, só pra relaxar, ligo o computador e vou ver como está o mundo… viu as notícias hoje? Tá uma loucura lá fora!