O mergulho
Tudo começa em um plano sequência, a câmera passeia pela superfície de um oceano cristalino e depois mergulha. Alguns cardumes de peixes são visíveis, de cores deslumbrantes e formas extravagantes, a água primeiramente clara quase como o céu vai tomando uma tonalidade azul marinha profunda e a as formas de vida ficando cada vez mais diversificadas e maiores; lulas, golfinhos, orcas. Por fim a água fica escura como o céu noturno, e aqui, apenas a luminescência das criaturas abissais ressalta aos olhos, em conjunto elas brilham como um céu estrelado. Então a câmera retorna a superfície, fitando um ser humanoide, boiando desacordado e com traje de mergulho.
A aventura começa aqui em Abzû, um jogo indie em terceira pessoa produzido pelo estúdio 505 Games e lançado em 2 de agosto de 2016. O pano de fundo aqui é um oceano vasto e belo, você controla um personagem sem nome, que por conveniência textual será nomeado de Mergulhador. Ele começa sua aventura na superfície, sem memória, e sem conhecimento de causa de sua situação e vai entrando em contato com a natureza e ajudando a restaurar os ambientes à medida que passa por eles enquanto mergulha cada vez mais profundamente nesse oceano misterioso.
De maneira semelhante a outros jogos do gênero, em Abzû o jogador deve guiar o personagem em uma narrativa contada através de gestos, ações e de imagens simbólicas interpretativas. O Mergulhador logo descobre ruínas antigas submersas, estas que contêm desenhos semelhantes a hieróglifos e imagens com narrativas acerca do povo que as deixou, e também contém uma verdade simbólica bem nítida: a água e o ambiente marinho, além de suas criaturas mais majestosas eram venerados por aquele povo.
A simbologia da Água
A ideia dos quatro elementos componentes da vida e do universo vem de diversas cosmogonias distintas. A concepção de um universo feito dos quatro elementos pode ser encontrada em praticamente todas as narrativas mitológicas ancestrais, onde de uma massa caótica ou um mar de caos, surgem os seres divinos responsáveis por reger cada um dos elementos (CHEVALIER, 2020).
O ponto principal na ambientação e estética do jogo é o oceano em que o Mergulhador está inserido. A vastidão das águas e das espécies de animais aquáticos contidas nele é absurda e a narrativa te leva sempre para baixo. Para o ponto mais profundo; passando por correntes marítimas nas profundezas que sempre o levam mais e mais profundamente e essa atitude tem metáforas muito claras na linguagem simbólica do inconsciente. No trecho a seguir, Carl Gustav Jung fala sobre a imagética da água no sonho de um de seus pacientes.
A mãe do paciente derrama água de uma bacia para outra. (Somente no 28° sonho o paciente se lembra de que essa bacia era da irmã.) Esta ação é realizada com a maior solenidade; seu significado é de importância para o mundo circunstante. Depois, o sonhador é rejeitado pelo pai. Defrontamo-nos aqui de novo com o tema da troca (v. sonho 1). Uma coisa é colocada em lugar de outra. O “pai” é eliminado e então começa a ação da “mãe”. Assim como o primeiro representa a consciência coletiva, o espírito tradicional, a mãe figura o inconsciente coletivo, a fonte da água da vida (JUNG, 2018, p. 79)
A analogia então se dá no mergulho, que indica profundeza, que se conecta com o Inconsciente Coletivo, a fonte da água da vida. Em linguagem alquímica, os sentimentos frios que inundam a psique para se contrapor o fogo quente da raiva, do ódio. No próprio ato do choro isso fica evidente, a maneira como uma pessoa parece estar se esvaziando e desaguando suas tristezas ao chorar. O conceito da água, de maneira simbólica, para os pesquisadores modernos segue praticamente inalterado.
A água, fonte e origem da vida, está ligada ao princípio feminino e materno. Nos mitos de criação ela está associada ao caos, ao estado amorfo do universo antes de existir. Segundo o catolicismo, a água é o veículo de expressão do Espírito Santo, motivo pelo qual ela é empregada no batismo. Há também um aspecto lúgubre para a água: ela abriga monstros e, em quantidade, provoca calamidades. Na psicologia do inconsciente, a água turva, escura, com as suas profundezas insondáveis, está ligada ao inconsciente (…). (FERNANDES, 2013, p.1139)
Dessa maneira, é simples observar a jornada do Mergulhador como uma busca por um reencontro, tanto com a natureza, à medida que ele ajuda os ecossistemas ao seu redor a se recomporem, quanto com os sentimentos e as memórias escondidas dentro de si. O fato de se encontrar desacordado e aparentar desconhecimento de tudo ao seu redor no início da aventura não vem sem propósito; além de um recurso de roteiro, para fazer o jogador descobrir as coisas juntamente ao protagonista, também representa essa necessidade do mesmo de mergulhar cada vez mais no desconhecido para reaprender e se reconectar consigo mesmo, e descobrir uma verdade que pode ser meio amarga quando revelada.
As Lições de Abzû
Na trama que decorre, é logo evidenciado que ali, em harmonia com os seres aquáticos e com a fauna e flora daquele ambiente, vivia uma sociedade pacífica. O Mergulhador logo descobre que ele é parte da calamidade que veio a destruir o balanço delicado daquele lugar, matando e destruindo tudo ao seu redor, pois sua natureza é a mesma das máquinas que encontrou ao longo de sua jornada.
Esses seres vieram e mudaram todo o balanço ecológico daquela região e caçaram os antigos seres marinhos que eram venerados pelo povo antigo. Ao longo da trama o Mergulhador se depara com um Tubarão Branco que o acompanha em sua jornada, primeiramente parecendo um antagonista, pois sua aparência é ameaçadora, mas logo mais se descobre que na verdade ele parece fugir do mesmo, pois reconhecia nele as máquinas que destruíram seu habitat.
O protagonista também aprende ao longo de sua jornada a desfazer o mal causado pelos antagonistas e a reestruturar biomas marinhos inteiros, deixando a cargo do jogar imaginar a origem dessas habilidades. Seria ele um catalogador de vida marinha arrependido? Um androide que se rebelou? As perguntas são várias e são deixadas em aberto, mantendo um mistério charmoso na história.
O Tubarão branco e o antagonismo entre eles, alegoriza bem a relação da natureza em sua forma mais grandiosa e agressiva – os tubarões brancos estão entre os maiores predadores dos Oceanos – que foge de medo do ser humano, pois ao colocar em outra perspectiva é o jogador que persegue o Tubarão o jogo inteiro.
Na trama do jogo fica claro além de um paralelo com o inconsciente no simbolismo do mergulho a metáfora da jornada do protagonista restabelecendo a vida como um contraponto a destruição ambiental causada pelo ser humano nos oceanos. Chega a ser tocante notar que uma máquina precisa descer às profundezas do inconsciente para se reconectar com suas emoções e desfazer uma destruição catastrófica e milenar, enquanto a humanidade segue sentada em suas poltronas enquanto os oceanos são destruídos; juntamente a os outros biomas.
Referências
CHEVALIER, Jean et al.. Dicionário de símbolos. Editora José Olympio; 35ª edição. 2020.
FERNANDES, Ermelinda Ganem; DE SÁ, José Felipe Rodriguez; GANSOHR, Matheus. Aterradora transcendência? Uma análise simbólica do Bafomé de Éliphas Lévi. Horizonte: Revista de Estudos de Teologia e Ciências da Religião, v. 11, n. 31, p. 1129-1149, 2013.
JUNG, Carl G. Psicologia e alquimia vol. 12. Editora Vozes Limitada, 2018.