Definitivamente o grande espetáculo da vida começa às seis da manhã. Como cheguei a essa conclusão? Fazendo uma breve análise do meu cotidiano. E foi durante essa análise que tergiversei em alguns questionamentos. Será que alguém já parou para pensar em como os fatos do nosso dia a dia são repetitivos? No quanto perdemos tempo? Que estamos sempre correndo em defesa da próxima parada? Eu parei para pensar. Enquanto divagava, lembrei-me, assim do nada, ou quase acidental, do palhaço. Aquele mesmo do circo, que faz todos os dias as mesmas piadas num único quadro, e quando o espetáculo chega ao fim, ele tira a maquiagem e volta para a sua vida, onde boa parte de suas piadas não surtem o menor efeito nas suas tarefas diárias, e na sua missão de ser eternamente engraçado. Um iludido! É assim que eu defino o palhaço.
E como defino o ser humano no espetáculo da vida diária? Um enforcado na trama cotidiana! É assim que defino o ser humano, especialmente aquele como eu, que tem por obrigação acordar todos os dias às seis da manhã e encarar uma dura jornada de trabalho. Eu sou um desses. Há quem diga que somos cidadãos respeitáveis e trabalhadores. Pura poética. Dispensaria esses adjetivos numa boa para cairmos uma infinita discussão sobre poesia, mas outra hora, pois agora preciso trabalhar e garantir o meu sustento.
E assim, às seis da manhã, eu acordo. O dia me sorri meio sem graça, com reticências, e eu lhe devolvo um sorriso mais sem graça ainda. Levanto-me e começo a minha feliz rotina. Tomar banho, escovar os dentes, tomar café, uma bela maquiagem para disfarçar o cansaço e finalmente, rua.
Todo dia é a mesma coisa, saio de casa correndo. Sempre me atraso, atrapalhada na escolha da sombra na paleta de cores do estojo de maquiagem. Pego um ônibus lotado e vou à luta. Não fosse por um detalhe, juro que gostaria de ser simplesmente teletransportada de casa para o trabalho, mas é esse pequeno detalhe faz toda a diferença no meu dia.
Todos os dias quando estou a caminho do ponto de ônibus eu me deparo com uma cena um tanto quanto curiosa. Passando pela rua onde moro, as seis e quarenta e cinco da manhã, vejo duas meninas construindo uma casa de bonecas. É simplesmente fantástica a maneira com que elas começam a construção, uma disposição invejável, e lembra – toda essa disposição, as seis e quarenta e cinco da manhã – num horário onde as crianças costumam estar dormindo, mas elas não, elas estão lá, construindo uma casa de bonecas.
De repente, como num passe de mágica as bonecas saem voando das caixas e ganham vida. Nesse momento eu paro e indago: e nossas vidas? Comparo-me com aquela boneca e de fato eu sou aquela boneca, e não só eu, todo ser humano pode ser comparado àquela boneca, pois vivemos todos na grande casa do universo manipulados pela menina Deus que todos os dias tira-nos da sua caixa e nos faz viver. Simples assim.
Admirável é a vida das bonecas, tudo acontece num passe de mágica. Bem que nossa vida poderia ser assim. É tudo tão alucinante na vida do ser humano que às vezes desejamos estar sonhando, ou que tudo não passasse de um engano, que vai acabar num piscar de olhos. Tá vendo? Já passou. Nada é perfeito.
O que mais me chama atenção é a maneira com que as meninas constroem a vida de suas bonecas, as meninas aparentam ter de seis a sete anos de idade, e já sabem manipular a vida como se tivessem toda experiência do mundo. Elas brincam de seriedade. E Deus? Será que é assim que Deus manipula nossas vidas? Decidindo nossos destinos num simples uni-duni-tê?
E eu fico lá, completamente abobalhada diante da cena, esqueço até que estou atrasada e preciso ir trabalhar, preciso correr para pegar o ônibus. As bonecas esperam as meninas, mas meu ônibus não. Com muita tristeza me despeço das meninas e vou ao trabalho.
Dia desses, uma das bonecas estava atrasada para uma reunião no trabalho, saiu às pressas, tomou o primeiro ônibus que passava lotado. Equilibrando-se entre um passageiro e outro, ela tentava terminar a maquiagem. Tão distraída estava que nem percebeu quando o ônibus chegou a sua parada. Desceu rápido, e como se estivesse no automático foi seguindo as pessoas que estavam em sua frente. Ouviu um barulho, gritos, desespero e foi na onda. Gritou, sofreu, perdeu-se em meio ao tumulto sem nem ao menos saber o que acontecia.
Quando caiu em si, percebeu que tudo não passava de uma simulação, era um falso acidente, um falso salvamento apenas para mostrar os perigos do trânsito. Foi na valsa, deixou-se levar. Refeita do susto, desafinou no coro dos contentes, saiu do mar gente e voltou à vida real, seguindo para o trabalho, apenas tentando entender aquele quadro diante de seus olhos.
Quando a boneca está atrasada ela sai voando nas mãos da menina e chega onde quer. E eu? Quem vai me fazer voar até o ponto onde preciso chegar? E a menina? Pobre menina. O que vai ser dela quando cair na real e descobrir que sua vida é um verdadeiro atraso? O que vai ser dela quando ela resolver sair voando, literalmente, se jogando da janela de um prédio? O que vai ser? A menina Deus não nos ensinou a voar, que pena. Mesmo assim, o que vai ser da pobre menina? A boneca não pode chorar por ela num momento de dor. Eu não posso chorar por ela assim como ninguém pode chorar por mim nos meus momentos de loucura. O que será de nós? Qual será o resultado de nossas vidas?
Seria tão fácil ser como as bonecas, não ter preocupações, não ter dor, não ter fome, não ter morte, nada. E de quando em quando, ter amor. Ledo engano. Elas têm preocupações sim.
Aí chega a hora do almoço, meu Deus, que felicidade! Parar no meio de tudo e comer. Corro pra casa e, quando passo pela casa de bonecas, tomo um susto daqueles. Lá estão elas, as minhas queridas bonecas, completamente soterradas no grande monstro chamado rotina.
Incrível. Em apenas algumas horas tudo mudou, o local onde antes se iniciava o projeto da casa agora se tornou uma grande cidade, cheia de casas, ruas, vizinhos, lojas, tem de tudo. O mais surpreendente foi ver a quantas anda a vida das bonecas. Alucinante. Uma das bonecas está casada, tem dois filhos e vive reclamando de dores nas costas, acha até que será necessário fazer fisioterapia. Anda de um lado para o outro sem saber se leva à filha caçula para a aula de dança ou sai para fazer as compras do mês, pois precisa lavar roupas e acabou o sabão. Liga a TV e uma novidade lhe conforta, finalmente a mocinha vai descobrir que sua grande amiga não passa de uma mulher má que a todo custo quer roubar-lhe seu grande amor. Ah, o que seria da vida não fossem as novelas! E mais, após a grande notícia, outro alento lhe conforta a alma, dez por cento de desconto no preço da faca de cerâmica. Ela corre até a gaveta do armário e indaga-se: pra que tanta faca meu Deus? Gaveta lotada, coração apertado, mas ainda tem espaço, cabe sim mais uma. Toma a filha caçula em uma mão, na outra o celular e enquanto manobra o carro na garagem liga para o número milagroso que irá resolver todos os seus problemas. Ela agora terá sua faca de cerâmica também. Opa. E aula de dança da filha caçula que já começou e ela nem saiu de casa? Ah, pequena boneca, esse problema não há zero oitocentos que resolva. Já outra boneca é solteira, trabalha em uma grande empresa, não ganha muito nem pouco, apenas o suficiente para viver em conforto. Foi mãe aos dezessete. Casou-se, separou-se e ainda lembra bem daquela noite de primeiro encontro, só não lembra mesmo qual era a música que tocava na boate. Detalhe. Mero detalhe, seu foco agora é outro. Nesse momento ela esta realizando um sonho antigo, caminhando com os pés descalços pelas areias da linda praia de Copacabana. Sim, a boneca esta no Rio de Janeiro. Comprou passagem após inscrever-se para um simpósio sobre Marketing e Propaganda, onde um grupo seleto discutia por três proveitosos dias, a obsolescência programa imposta pelo mercado, onde os produtos precisam ser renovados todos os dias, o novo nascendo velho, o grande museu de novidades cantado pelo poeta há alguns anos atrás. E lá estava ela, na cidade maravilhosa, num hotel de luxo, discutindo temas importantes não só para ela, mas também para uma plateia com sede de novas teorias de justificassem aquela ideologia de mercado. Foi esse o resultado da vida das bonecas enquanto eu estava no trabalho. Que vida!
Nessas horas eu queria ser mesmo uma daquelas bonecas. É essa a matéria que move os sonhos.
Revolto-me. E enquanto revoltada estou, lá estão elas, as meninas Deus manipulando suas pequenas pessoas, num ir e vir de momentos. E a menina Deus que manipula os homens, onde está? Equilibrada, certamente, em alguma nuvem rindo de tudo isso.
Eu poderia ficar a vida inteira ali, olhando tudo aquilo, mas preciso ir. Almoço e volto para meu trabalho, só mais quatro horas, já vai passar, acredite, tudo passa.
No fim de mais um longo dia de trabalho volto pra casa com a certeza de mais um dever cumprido. É este o ciclo da vida, acordar, viver, trabalhar, amar e voltar pra casa. E assim eu volto e choro diante da cena que vejo. Lá estão elas, as minhas bonecas, tristes e chorosas, despedindo-se de suas meninas. O dia acabou como tudo sempre acaba.
A casa não existe mais, nem a rua, nem a loja, nem a cidade, está tudo guardado. As bonecas então beijam suas meninas e saem voando para suas caixas. A cena é triste, mas tem uma ponta de alegria que vem da certeza que as bonecas têm de que, amanhã bem cedo, as meninas irão acordar e tirá-las das caixas para viverem mais um dia.
Que sorte tem essas bonecas. Que sorte tenho eu de ver aquela cena mágica. Que despedida!
E assim vão as meninas, guardando suas bonecas, filhos, casas e coisas dentro da caixa. Elas guardam a vida.
Queria eu ter a certeza daquelas bonecas. A certeza de que amanhã suas meninas vão acordá-las. Com os seres humanos não é bem assim que a banda toca. Ficamos muitas vezes assombrados quando vamos dormir e por isso todas as noites, antes do sono, imploramos para que a menina Deus não se esqueça de nos tirar da sua grande caixa chamada universo e, nos permita viver mais um dia na sua casa de bonecas intitulada vida. Rezamos todas as noites para que possamos ver a vida por mais um dia.
E assim, entre fantasia e realidade o homem vive. Sonhando estar numa casa de bonecas à espera dos caprichos de Deus.
Que ele tenha bons pensamentos!