Alair acordou mais cedo do que o habitual naquela manhã de setembro. O escuro da noite adentrava sem cerimônia a pequena sala daquele apartamento suburbano. Abriu a janela, olhou para o céu e encontrou, atrás de uma nuvem perdida como um pensamento distante, um raio de sol que timidamente iniciava a pintura da manhã com seus tons vermelhos cor de aurora.
Seus olhos se acomodaram no infinito como se quisessem aspergir a essência da gênese no nascimento daquele dia. Voltou o olhar para o apartamento tão pequeno, no 10º andar. E, nessa imersão nas veredas do mundo, fizeram-lhe companhia todas as reminiscências do passado. Rememorou a antiga e imensa casa com os empregados aptos a servir sempre, dos carros na garagem, das viagens aprazíveis com a família, do conforto, bens materiais e prazeres ilimitados e algozes que o dinheiro podia comprar.
Abruptamente, ouviu o abrir da porta da sala anunciando a chegada da Tristeza, da Derrota e da Impotência. Fitou-as dentro dos olhos com tamanha intensidade de rejeição que somente conseguiu ouvir o elevador que descia com as companhias indesejadas. Não havia espaço na sua vida para elas.
O despertador do relógio de pulso foi quem lhe devolveu ao mundo real. Passou a dedilhar, como nas notas do violão, todos os tópicos da reunião de trabalho que lhe aguardava.Lembrou-se da frase que alguém lhe dissera, um dia, “O tempo consolida seu destino”. Alair se permitiu uma releitura mental e acrescentou “O tempo modifica o seu destino. Mas tão importante como lutar para mudar, é adaptar”. Esse pensamento lhe devolveu o sorriso.
Sentiu um cansaço aliviado como se tivesse lembrado da vida inteira. Essa Leveza acalmou seu coração. Então, começou o ritual, tomou o banho rápido de todos os dias, vestiu-se da forma rápida de todos os dias, organizou as pastas com os documentos de todos os dias. Porém, tudo mais rápido que o habitual. Afinal, dedicara muito tempo com os pensamentos naquele olhar pela janela.
Quando entrou no quarto, mergulhou na imensidão do negrume daqueles olhos, ainda sonolentos, que lhe receberam com um sorriso e um abraço. E perguntou com a docilidade que lhe era habitual.
– Tudo certo para a reunião, amor?
– Sim. Precisamos convencê-los a comprar. Tenho quase certeza de que o negócio será fechado – Alair respondeu com a sagacidade e competência tão peculiares.
– Acha que virá para o almoço? Estou pensando em fazer aquele escondidinho de carne que você tanto gosta – perguntou os olhos negros com ar de expectativa.
– Só se você prometer não salgar como da outra vez – Alair respondeu não contendo o sorriso que logo se transformou em uma sutil gargalhada.
Gargalharam juntos e, novamente, abraçaram-se como se quisessem fundir duas almas em um só corpo.
– Psiu! Cuidado para não acordar as crianças. Ainda é muito cedo para elas irem para a escola. Deixemos que elas durmam um pouco mais – sentenciou aqueles olhos que se tornavam mais negros quando se falava dos dois filhos.
– Mal tive tempo de conversar com eles ontem à noite, o cansaço dilacerava meu corpo. Mas verifiquei os cadernos e as lições. Acho que a Duda está com dificuldade em interpretação de textos. Vou tomar a lição com ela hoje. Já fizemos um acordo – informou Alair com a determinação e cuidado que sempre tivera com sua prole.
– Mas estão com boas notas. Quando vou deixá-los na escola sempre pergunto à professora sobre o rendimento deles nas aulas. Temos filhos inteligentes como você – disse os olhos negros com tom agradável, mas com ar de tristeza e culpa.
Alair, diante desta observação, tratou de enfatizar:
– São inteligentes como nós dois, seus pais. Já lhe disse que você não deve se menosprezar – e levantou para sair.
Mas antes de ir embora, Alair contemplou, novamente, com tanto carinho aqueles olhos tão negros e profundos que haviam aprisionado sua alma. Estava, indubitavelmente, diante do amor da sua vida. Aqueles cabelos emaranhados lhe atribuíam mais graça e beleza. E, nesse instante de encantamento, sentiu segurança para perguntar:
– Tem entrevista de emprego hoje? – com semblante de fingimento de que não se importava com a resposta.
– Tenho duas entrevistas. Marquei no horário em que as crianças estão na escola. Mas não se preocupe. Chego a Tempo de fazer o almoço – finalizou com um sorriso forçado.
Alair apressou-se com as palavras de conforto e incentivo:
– Vai dar certo. Confio em você. Tudo tem seu tempo. Com seu currículo as portas se abrirão, com certeza. Só não desanime. Isso jamais. Estamos juntos, lembra?
– Preciso ajudar nas despesas. O fato de só você trabalhar me incomoda tanto – disse os olhos negros com um pesar na voz.
Alair interrompeu essas palavras com um beijo deliciosamente inesperado. Era sua forma de dizer que estava tudo bem.
– Agora preciso ir. O trânsito estará um caos daqui a uns minutos – afirmou Alair enquanto pegava sua pasta executiva.
– Vai sair sem passar batom? – perguntou os olhos negros com ar de inquisição.
Foi quando Alair percebeu que o beijo dado no marido havia deixado seus lábios sem cor.
– Você me desconcentra – disse Alair em meio a um novo e rápido beijo dado naqueles olhos negros a quem ela dedicara sua vida.
– Você é linda de qualquer jeito, o batom é só um detalhe – disse o marido com os olhos mais negros e apaixonados.
Alair passou o batom vermelho e avassalador, não sabendo se era para combinar com a echarpe escarlate que usava ou se para dar mais vigor e coragem à sua luta diária de Mulher Moderna que trabalha fora, provém o sustento da família e não se intimida ou se sente desmerecida pelo fato do marido ficar cuidando dos filhos e da casa. Afinal, como disse nossa protagonista “O tempo modifica nossos destinos, é preciso adaptação à nova realidade”.
A Modernidade exige mudanças de posturas e comportamentos, mas sobretudo, aceitação do “novo”. Na vida das MULHERES MODERNAS não há espaço para o preconceito, nem para limitações. Como já enfatizei, em outra crônica, Mulheres Modernas não nascem de contos de fadas. Somos Guerreiras do Cotidiano. Mas nem por isso, perdemos nossa beleza, sensibilidade e essência de ser MULHER.