A sociedade fast-food é insuportável

Ao iniciar meu estágio no Centro de Atenção Psicossocial – CAPS II, conheci um usuário chamado, aqui, de José, que me contou a respeito de sua demissão. O mesmo havia conseguido um emprego na política. Nas idas e vindas de seu trabalho, o usuário acabou por contar para algum de seus superiores, que ele era usuário do CAPS e, com este fato, passados alguns dias, esta pessoa recebeu sua demissão.

Diante disso, questiona-se o que fazer frente a uma situação como esta, onde alguns querem e precisam tanto de uma oportunidade como a citada acima, para assim, de algum modo aprender a lidar com seus problemas e ganhar seu próprio dinheiro, mas são marcadas pelo estigma da intolerância que carrega o sofrimento mental. Na atualidade prega-se tanto a respeito da inclusão social, do respeito ao próximo, da ajuda mútua, mas são nessas horas que se vê o tanto que falar é fácil e difícil é por em prática o que se fala.

O mercado de trabalho tem se tornado algo cada dia mais seletivo e exigente; busca pessoas quase perfeitas, que não podem ter o direito de ficar doentes, de ter uma família, de usufruir de férias, ou até mesmo de aprender algo a mais e subir de cargo. O crescimento profissional e social demanda anos para ser conquistado e tem sido contingente ao desenvolvimento do stress, de palavras e movimentos repetitivos fora do ambiente de trabalho e de sofrimento mental.

O medo e o preconceito ainda são vigentes na sociedade, principalmente em relação às pessoas que usam um serviço de saúde mental. Este fato é algo complexo para se discutir, é preciso haver mudança em relação a esse estigma, o da “loucura”. Desse modo existe a possibilidade de se utilizar das muitas práticas e medidas existentes, tais como promover a reinserção das pessoas que vivenciam experiências de crise, ou seja, de rompimento drástico com a cadeia relacional e simbólica. Para isso acontecer é necessário um conjunto de ações do Estado, legislativas, culturais e comunitárias.

Autores da Reforma Psiquiátrica discutem acerca da prática da Atenção Psicossocial a qual se dá, necessariamente, em contato com o território no qual moram as pessoas que trabalham, gestam e usam dos serviços de saúde pública. O território, para além das linhas geográficas, é composto por relações pessoais, relações comerciais, relações de preconceito, de aceitação, de solidariedade, de crueldade; enfim, o território é feito por pessoas e suas relações, muitas dessas relações mediadas por instituições. (Costa-Rosa, 2000). Para se tentar atingir a comunidade é necessário ir além da instrução e da orientação para as pessoas que convivem com o sofrimento mental. Deve-se trabalhar com concepções coletivas, com necessidades coletivas, com recursos coletivos. O coletivo é um importante meio e uma importante forma de trabalho da Atenção Psicossocial. Mas, o que é o coletivo?

O coletivo pode ser definido, como já aqui se iniciou, a partir do conceito de relação. Para Escóssia e Kastrup

A partir dos conceitos de prática, molaridade/molecularidade e de rede, constatamos que a superação da dicotomia indivíduo-sociedade implica, além da desnaturalização dos termos, uma nova abordagem da noção de relação. Ao contrário de uma relação que se dá a partir de termos constituídos – tal como no conceito de interação – o caminho que se apresenta é conceber um planorelacional produtor dos termos. Do ponto de vista ontogenético, tal plano (ou, tal relação) é anterior às interações, oposições e fusões operadas entre indivíduo e sociedade. A noção de anterior adquire aqui o sentido de condição, antes que de causa, já que o plano coexiste com o que ele engendra. Do ponto de vista topológico, está entre indivíduo e sociedade. “Lugar-meio” de sentido, como afirma Michel Serres em Filosofia Mestiça (1993) (Escóssia e Kastrup, 2005, p. 302)

Portanto, aplicando essa lógica ao caso da demissão da pessoa que faz tratamento no CAPS, podemos dizer, de maneira simplificada, porém correta, que tal sujeito não foi demitido por possuir uma doença mental, mas, ao contrário, a doença lhe passou a constituir, mais arraigadamente, pelo fato de ter sido demitido a partir do discurso que explica a própria demissão pela suposta portabilidade de uma doença mental. A demissão aliada ao discurso psico-biomédico é o que continua produzindo a doença de José.

Ninguém porta doenças mentais. As doenças mentais não são portáveis e nem portáteis. Nós as carregamos. Vivenciamo-las pela abertura que temos ao mundo e pela abertura que o mundo tem a nós. O sofrimento mental quando tratado como doença carrega as concepções todas que a doença carrega. A concepção de transmissibilidade das doenças é também vivida no sofrimento mental o que justifica muitas demissões e isolamentos que ocorrem todos os dias. Se o isolamento fosse apenas feito pelo aparato hospitalar, o estigma seria algo facilmente desconstruído. Contudo, os muros que separam as pessoas, estão entre nós, cotidianamente, em nossas cabeças inclusive.

Como mais um exemplo dessas relações que vivemos e aceitamos relata-se outro caso (relato feito pelo professor do Estágio em Psicologia e em Processos de Promoção de Saúde, orientador da estagiária que aqui relata essa experiência e essa reflexão): no interior do estado de São Paulo, Fabiana (nome fictício) procurou, em 2008, a Central de Atendimento ao trabalhador com o objetivo de deixar o seu currículo para o pleito de trabalho. Fabiana trabalhava, naquele tempo, como doméstica e estava há um ano afastada de seu trabalho, pois experimentara aquilo que a comunidade técnica-profissional nomeia de Transtorno Afetivo Bipolar com episódio maníaco. Fabiana, na crise maníaca, passou a desenvolver relações conturbadas com os filhos, esposo e com sua mãe. Apresentou delírios de grandeza, insônia e alteração brusca do comportamento. Praticamente todas as suas relações foram desestabilizadas…entraram em crise, refletiram a crise que por Fabiana passava.

Independente do estatuto conceitual que damos a essa experiência, pode-se dizer que é consensual a idéia de que esse processo todo, vivido por Fabiana, seus familiares e a equipe do CAPS que a acolheu, foi atravessado por um intenso sofrimento mental e mortal. Mortal pelo fato de produzir mortes – a mãe dedicada morreu (pelo menos durante a crise), a esposa presente morreu, a concepção de mundo de Fabiana também morreu; morreram esperanças de profissionais e relações sociais antes cultivadas por Fabiana; mesmo que tudo isso seja possível de reconstrução, a crise que é atendida na Atenção Psicossocial promove morte, às vezes fisicamente e literalmente falando. É com morte que se lida nas crises. Mas, voltando à história de Fabiana, o que se ressalta aqui é o fato de que, no momento de procura da Central de Atendimento ao trabalhador, Fabiana foi desencorajada, pela secretária do local, a não preencher a ficha de requerimento de trabalho, pois Fabiana tomava remédios psiquiátricos. Certamente ela poderia tomar diversas atitudes e a que ela tomou foi de resignação, impotência frente ao enraizamento de um discurso que, por meio de poucas palavras, aprisiona pessoas. O próximo passo de Fabiana foi procurar um advogado que a encorajou a se aposentar, uma vez que o diagnóstico dela estava na lista passível de aposentadoria, justificativa pobre, circular, redundante, tautológica: essa lógica diz que a aposentadoria deveria se dar apenas pelos fatores pelos quais ela já se dá – pela burocracia e pela desistência do homem pelo homem.

Vemos aí, nesses relatos, agenciamentos de impotência e submissão na vida. Fabiana foi considerada, aos 24 anos de idade, como inválida. Mesmo que todo o processo jurídico de sua aposentadoria tenha sido feito por ela mesma, com os seus três filhos, andando pelas ruas da cidade, orientando-se, portanto; foi considerada inválida mesmo com o fato de ela própria cuidar de sua casa, de forma impecável conforme relatos de familiares e conforme se via em visitas domiciliares; foi considerada inválida mesmo que lhe pulsasse a vida, depois mesmo das mortes vividas na crise e das crises vividas pela morte.

Contrapondo a estes episódios, há pessoas que também frequentam os CAPSs do Brasil todo e que, nem por isso, são demitidas. Pelo contrário: estudam, participam de concursos públicos, inclusive em outras cidades, trabalham na política, enfim sabem se defender, se articular e conquistar seu espaço, exercendo o direito de cada ser humano.

O exercício da Atenção Psicossocial busca superar e substituir o modo asilar, as práticas manicomiais, mas como fazer esse trabalho sozinho? Prota (2010, p. 1) explica que “a luta antimanicomial vem como resposta à demanda de trabalhadores, familiares e de usuários dos serviços de saúde mental, demanda esta que não se reduz ao tratamento medicamentoso, mas que é, de fato, reivindicadora de direitos humanos e de cidadania”.

Percebe-se aí que essa luta contra o preconceito da sociedade é algo que já vem de anos atrás, onde com o advento da Atenção Psicossocial, muitos usuários e trabalhadores puderam se expressar e correr atrás de seus direitos enquanto cidadão. Direito de ser respeitado, de não sofrer nenhuma retaliação por parte da sociedade e de exercer sua vontade de trabalhar em algo que ela saiba e goste de fazer. Devemos agenciar solidariedade, paciência; cultivar a insistência do homem com o homem; a humanização é um processo demorado…a sociedade fast-food é insuportável.

Referências:

COSTA-ROSA, Abílio da. O Modo Psicossocial: Um Paradigma das Práticas Substitutivas ao Modo Asilar In: AMARANTE, Paulo Org. Ensaios-subjetividade, saúde mental e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000. P.141-68

ESCÓSSIA, Liliana da e KASTRUP, Virgínia. O conceito de coletivo, IN: Psicologia em Estudo, Maringá, v. 10, n. 2, p. 295-304, mai./ago. 2005

PROTA, R.. Modo Psicossocial Como Paradigma da Reforma Psiquiátrica. Diálogos e Saberes / Paradigmas e estilos.  LASAMEC-FSP-USP. 2010. Disponível em:http://reformapsiquiatrica.wordpress.com/2010/06/20/modo-psicossocial-como-paradigma-da-reforma-psiquiatrica/. Acesso em: 03/09/2012 às 17h03.

SADIGURSKY, D.; TAVARES, J.L. Algumas considerações sobre o processo de desinstitucionalização. Rev.latinoam.enfermagem, Ribeir„o Preto, v. 6, n. 2, p. 23-27, abril 1998. Disponível em:  http://www.scielo.br/pdf/rlae/v6n2/13904.pdf. Acesso em: 21/09/2012 às 12h35.


Nota: O texto foi produzido sob a orientação do Prof. Victor Melo no Estágio em Prevenção e Promoção a Saúde no curso de Psicologia do CEULP/ULBRA.