“Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias, e cheguem os anos dos quais dirás: não tenho neles prazer.” (Eclesiastes 12:1)
Há alguns dias, em um desses rompantes emocionais que temos de tempos em tempos, uma espécie de martírio pessoal, resolvi assistir “Amour”, um filme que retrata a estória de um casal de aposentados. A trama gira em torno de Georges e Anne, interpretados por Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, das angústias e frustrações que acompanham as tentativas de aprendizado ao se lidar com as sequelas de doenças quase sempre relacionadas ao avanço da idade, das limitações que as mesmas trazem e do desgaste físico e, principalmente, emocional, que acometem todos ao redor, ou uma grande parte dos envolvidos, de uma forma ou de outra.
Uma obra com grandes interpretações, mesmo contando com um elenco mínimo, de poucos personagens. Basicamente, o marido e a mulher, vítima de um Acidente Vascular Cerebral (“derrame”) e, por isso, inicialmente hemiplégica (um lado do corpo paralisado).
No final, a estória nos faz imaginar o quão difíceis devem ser os anos vindouros, ou seja, a velhice. Nos deixa com uma sensação de que somos nós, daqui uns anos e que, por sorte, talvez tenhamos alguém em quem confiar… Em quem se apoiar. Pois bem…
Trabalho na área da saúde há alguns anos, Enfermagem, e vou de um extremo ao outro: Para a Prefeitura da Cidade, trabalho em uma Maternidade, lido diretamente com o início de pequeninas e promissoras vidas, com toda uma jornada pela frente; e para o Governo do Estado, trabalho em uma Emergência (Pronto-Socorro), lido com o imediato, com o surpreendente, com a tentativa e, por muitas vezes, com o fim.
Resumidamente, deixarei um pouco do que vivi e aprendi pelos corredores e enfermarias dos hospitais pelos quais passei, porém, somente os momentos menos complexos, mais palpáveis. Não os deixo para que se sintam deprimidos ou atribulados, mas para que se lembrem de que todos nós, sem exceção, estamos sujeitos a isso, seja como o acometido ou como a diferença. Sim, por que precisamos de mais diferenças e não mais do mesmo.
Nós envelheceremos também. Pelo menos é o que sempre se espera, então, não nos custa respeitar e tratar com cuidado os que, um dia, foram tão jovens e ativos quanto nós.
Um certo dia, começaremos a contar as mesmas histórias repetidas vezes. Nossas mentes já não serão tão aguçadas, então, se alguém repetir cem vezes um conto ou lembrança, escute a centésima primeira vez também… Não ignore.
Por vezes, desorientados, gritaremos coisas sem sentido, chamaremos os que já se foram e, principalmente, em determinados momentos, chamaremos nossas mães. Sim, até nesses momentos difíceis, precisaremos delas. A diferença é que, precisaremos de “pais e mães de mentirinha”… Seja paciente. Já fui “mãe” de senhoras de oitenta e poucos anos, já respondi “Minha filha, vamos tomar um banho quentinho? Não precisa gritar o tempo todo… Eu estou aqui com você!” e já acalmei tantos outros, apenas conversando , participando da mesma “ideia”, falando sobre chuva, roça, quadrilhas, tempos antigos, trens de ferro, receitas especiais, ingredientes secretos, pratarias, peixes que voam, e por aí vai… Nada me custou, além de alguns minutos proseando e, em certos instantes, ouvindo poesias desconexas sendo declamadas durante algum procedimento. Elogie sempre. Converse. Sorria.
Não vamos mais querer comer normalmente, muitos alimentos se tornarão insípidos ou difíceis de serem mastigados e engolidos, então, nesse caso, sopas, caldos e vitaminas batidos no liquidificador. Alguns precisarão de canudos e colheradas pequenas. E tempo. Muito tempo e paciência até acabar uma refeição. Não esqueça: Desnutrição atinge qualquer faixa etária. Acredite.
Como dizem popularmente, teremos incontinência. Sim, possivelmente precisaremos de fraldas. Muitas delas. E precisaremos também de ajuda, como um bebê recém-nascido. Por muitas vezes, a recusa será habitual. Não se zangue. Conte até dez e tente outra vez.
Envelheceremos. Nosso organismo também. Provavelmente, precisaremos de algumas internações hospitalares para tratamentos diversos: Pneumonia, Diabetes Mellitus descompensada, Insuficiência Cardíaca Congestiva descompensada, Insuficiência Renal, Insuficiência Respiratória, enfim… Uma infinidade de doenças. Porém, nunca… Jamais seremos “velhos” o bastante ou “crônicos” o bastante para sermos privados de visitas e acompanhantes durante a estadia hospitalar. Encontre um tempo, quinze ou vinte minutos, para ao menos dizer “Oi! Um pouco melhor? Como estão as coisas?”… E dê atenção.
Nosso corpo, nossa pele… Tudo estará mais frágil e sensível. Se ficarmos na mesma posição durante muito tempo ou se, devido a alguma sequela de inúmeras doenças, ficarmos acamados, precisaremos ser mudados de posição diversas vezes ao longo do dia. Úlceras de pressão, ou escaras, como são conhecidas, começarão a se desenvolver, aos poucos, em qualquer parte do corpo e, se não tratadas corretamente, atingirão os tecidos de tal maneira que será possível a visão de tecidos ósseos. Sim, essas feridas chegam a esse ponto: Ossos ficam à mostra. E elas infeccionam. Mas, não… Não se assuste. Prevenção? Após o banho, hidratar bem a pele e utilizar todos os recursos possíveis, como colchões especiais, tecidos macios, almofadas… E o principal? Realizar a mudança de posição (mudança de decúbito).
Falando em banho, talvez… E somente talvez, chegará o dia em que não seremos tão fortes, então, não conseguiremos permanecer de pé, debaixo do chuveiro, por muito tempo. Precisaremos de uma cadeira como auxílio. E, não, não será preguiça. Se precisarmos de um “banho de gato”, na cama, a água morna será sempre a melhor opção.
Além de tantas outras peculiaridades, por fim, quando não tivermos mais disposição para continuar acordados, quando não quisermos permanecer acordados ou não pudermos mais acordar, se ainda existir um fôlego ínfimo de vida, quero eternamente acreditar que nossos ouvidos ainda estarão atentos, então, conversas interessantes, lembranças maravilhosas, cantigas há tempos não cantadas… Essas serão muito bem-vindas. Creio que nossos ouvidos estarão atentos também a qualquer tipo de desculpas sinceras e confissões de amor. E não, não penso que precisaremos de tristezas e choro. Não isso. Apenas o essencial. Apenas o que nos deixará confortáveis, mesmo que sejam nossos últimos instantes.
Aos que ficarem, seremos gratos até o fim… Pelos ótimos cuidados e auxílios prestados. E pelo carinho e paciência. Talvez, partiremos com a íntima certeza de que fomos especiais para alguém.
Enfim… Tudo isso pode até não acontecer, mas existe uma possibilidade. E se ela existe, ainda que pequena, não nos custa sempre oferecer o nosso melhor. E se não for pensando no próximo, pensemos, então, em nós mesmos… E em como gostaríamos de ser tratados se estivéssemos na mesma situação. Pensemos que, por fazer o melhor hoje, seremos recompensados amanhã, de alguma forma. Apenas… Pensemos, seja lá como ou o que for, mas cuidemos. Sem negativas. Sem abandonos. Coloquemos sempre a cabeça no travesseiro e, sem dúvida alguma, pensemos: “Fiz o que pude. Fiz o meu melhor!”. E descansemos, sem arrependimentos.