Helder Pessoa Câmara morreu com 90 anos. Nordestino, foi arcebispo católico de Olinda e Recife e cidadão do mundo. Anunciou Jesus, mas também denunciou os escândalos da ditadura. Foi ameaçado de morte uma dezena de vezes, algumas poucas foi vítima de atentados que, felizmente (por graça divina?), fracassaram.
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Foi indicado duas vezes ao Prêmio Nobel da Paz e, sabe-se hoje, que já havia sido escolhido, pela última vez, até que o governo brasileiro ameaçou cortar relações com a Suécia, caso o prêmio fosse anunciado. Não era um intelectual, nos moldes que a sociedade espera de um. Era baixo, raquítico, usava uma única batina bege. No entanto, é possível que eu possa dizer, nessa altura da minha vida, que meus olhos nunca viram homem maior.
Permitam-me passar a palavra a ele, numa ocasião em que escreveu uma parábola sobre os andaimes, em um de seus livros: Um olhar sobre a cidade.
“Quando assistires à retirada dos andaimes contempla – é claro – o edifício que surge. Mas pede pelos andaimes, pois é duro servir de suporte à construção, ser necessário à obra e na hora da festa ser retirado como entulho”.
Não é o que acontece todos os dias? Ninguém constrói um prédio sem andaimes. E quanto maior é o edifício, mais andaimes. Vem a festa da cumeeira. Mas quando o prédio está acabado, os andaimes sobram. Ninguém pensa mais neles; são retirados como entulho.
Já várias vezes, usei a palavra sobrar. Já pensaram como é triste, como é duro sobrar? É um dos verbos mais difíceis de conjugar, é uma das realidades mais tristes de viver…
Aquela senhora era moça, forte, bonita, cheia de vida. Era o centro da casa. Cuidou dos filhos. Criou meninos e meninas que viraram moças e rapazes, e foram se empregando, e foram casando, e foram partindo. Hoje, a dona da casa já idosa, cansada, doente, está sobrando. Os filhos nem se lembram da trabalheira terrível, dos sacrifícios que ela teve com eles.
Aquele senhor era o chefe da família. Vendia saúde. Forte, disposto, trabalhador, sustentava à casa inteira e ainda acudia a velha mãe e uns parentes pobres da esposa. Teve um derrame. Está meio entrevado. Recebe uma micharia do Instituto. Anda nervoso. Dá trabalho. Ninguém se lembra mais do que ele foi como os andaimes, sem os quais a casa não se faz, o edifício não sobe. Está vivendo a hora de os andaimes serem retirados como entulhos. O edifício não precisa deles.
Deixo aqui dois apelos:
Quem tiver em casa gente sobrando, gente que foi gente, hoje é sombra do que foi, e só dá trabalho, e despesa e preocupação; quem tiver gente sobrando em casa, faça tudo para ter paciência, ser agradecido, não humilhar… Lembre-se de que seu dia chegará. O tempo passa mais rápido do que a gente pensa. Não humilhe e não deixe que humilhem ninguém.
E meu apelo a quem pensar que está sobrando: não deixe esse travo entrar na sua vida. Não se encha de amargura. Esqueça o verbo “sobrar.”
São palavras de C, esse nordestino cidadão do mundo.