O que falar quando não se tem o que falar?

Pode ser que ao afirmar com tanta convicção que nenhuma outra sensação se compara a sensação de perda e vazio que a morte nos causa, seja inevitavelmente ofensiva demais, porém, não há outra explicação cabível no que se refere a esse sentimento. Estamos longe de conceituar ou enquadrar o termo morte em descrições que, por mais detalhadas que sejam, ainda se perdem em meio às nossas dúvidas, tal é como a vida.

A morte nada mais é do que um idioma sem tradução, problema sem solução ou dúvida sem explicação. É, quem sabe, o fechamento de um círculo. Alguns descreveriam como “piada de mau gosto”, uma história mal contada, surpresa que mesmo esperando, sempre surpreende. A morte, entre tantos mistérios, é o que faz com que as pessoas continuem na ânsia de escrever uma história.

No entanto, os assuntos relacionados a esse tipo de perda é constantemente ignorado. As reflexões sobre a morte, conversas ou explicações sobre suas causas ou efeitos geralmente são adiadas ou deixadas de lado, segundo Passos (2005) “evitar falar sobre a morte é uma das formas que utilizamos para nos defender ou nos pouparmos do sofrimento”.

Poucos fenômenos atingem as pessoas tanto quanto a morte, e aos olhos de uma mãe, “o certo é o filho enterrar os pais”, essa perda pode provocar outros danos, caso não encontre respostas para suas perguntas diante do ocorrido. É comum encarar a morte como algo mais “aceitável” quando acontece com uma pessoa já em idade mais avançada, pois se tratou de um processo natural e lógico no ciclo da vida familiar. No entanto, quando esse evento ocorre com uma criança, segundo Passos (2005) a morte é considerada como uma tragédia humana, um absurdo. É diante de uma situação como esta que diversas perguntas nos passam pela cabeça, nós, enquanto profissionais de saúde, enquanto auxiliadores na dor do outro, no amparo, no acolhimento, o que fazer? O que falar? O que explicar?

Arriscar-me-ia responder: Nada.

Durante as atividades realizadas no estágio em ênfase de Promoção em Saúde na Policlínica Aureny I, muitos foram os dias em que a única coisa que eu pedia era um caso, um fato, qualquer coisa que me tirasse da desmotivação do local. Isso devido toda a complexidade de trabalhar numa rede pública de saúde, onde se deve primeiramente enfrentar uma fila de triagens estacionadas, encarar os diversos “nãos” por parte da sociedade que cada vez mais buscam por respostas imediatas, deixando de aceitar o atendimento algum tempo depois, devido todo o congestionamento causado pelo sistema. A resistência durante os atendimentos, desistindo assim, muitas vezes, antes de receberem alta.

Quando parecia não ter mais jeito, e que seria esta uma experiência válida somente pelas frustrações, foi que, durante a realização de algumas triagens, surgiu um caso urgente, vindo de outra instituição de saúde, mas que devido à urgência da situação e ao fato de não terem recebido nenhuma resposta, optaram por procurar ajuda no serviço de psicologia da Policlínica. E finalmente eu tive o privilégio de conhecer todos os receios de um profissional em formação: O que vou fazer?

Andressa* é uma jovem de 24 anos, bonita e triste. Entrou na sala portando sobre os ombros um vestidinho de criança, roxo, com estampa florida e brilhosa, lágrimas nos olhos e silêncio no coração. Por mais que me dirigisse a ela com toda cautela, com perguntas simples para embasar a triagem, todas as palavras que eu dissesse talvez não fossem suficientes e não adiantaria muita coisa, já que ela evitava qualquer contato, não respondia e por vezes parecia não ouvir o que eu estava falando, apenas chorava.

Depois de muito silêncio, de muitos porquês dentro da minha cabeça, e mais ainda dentro do coração dela, finalmente Andressa começou a destrinchar os fatos: há exatos quinze dias, Andressa perdeu um pedaço de sua vida, sentiu a pior dor de todas. Sua filha de quatro anos, caçula da família, vítima de um afogamento, despediu-se do mundo. No momento do relato o “nó” em minha garganta obviamente era um grão de areia diante da dor que Andressa trazia nos braços, ombros e peito.

Toda a situação tornava mais difícil pelo sentimento de culpa, de incertezas e a imagem do vestido da criança sobre os ombros. Eu poderia passar o dia falando, que aquele vestido falaria muito mais para ela do que minhas palavras.

Durante as duas únicas sessões em que Andressa compareceu, o discurso não muito se modificava, ao contrário do sentimento, que ainda que dolorido, aos poucos se rendia a conformidade, e ainda que todas as perguntas dela (“Por que comigo?” “Por que com ela?” “Quem eu vou culpar?”), continuarem sem respostas, ela se erguia. Passando por cada fase do luto em silêncio, enfrentando cada dia de saudade de forma unicamente pessoal, mas que, a julgar pelos diálogos, pelas expressões faciais, pelo vínculo, ela estava finalmente obtendo algum conforto entre lembranças e fotos.

Agora, o vestido antes domando o ombro, tornou-se parte das lembranças guardadas dentro do guarda-roupa, relembrado vez ou outra, mantendo a esperança de que  um dia as coisas façam sentido.

Andressa procurou atendimento assim que perdeu seu “lado fatal”, e não cabia a nós fazermos muita coisa, ela ainda tem um ano para vencer o luto, ainda tem um ano para reconstruir a continuidade de sua vida sem a presença da dona do vestidinho roxo. E toda essa experiência, me valeu todo o estágio. Infelizmente Andressa não compareceu mais aos atendimentos, nosso último encontro permaneceu sem respostas, e por consequência das suas faltas recebeu alta por desistência.

Encerro com o poema de Luft (2011), que descreve melhor a sensação que não pode ser descrita:

Por que ele morreu abriu-se em meu peito este buraco, através dele arrancaram-me o coração e colocaram um estranho maquinismo, cheio de lâminas e pontas, que me recorta e me preserva – pois se de um lado a morte me abraça, do outro  a vida me chama

*Nome Fictício

Referências

LUFT, L. O Lado Fatal. Ed. Record. Rio de Janeiro, 2011.

PASSOS, R. H. A Morte Como Fato da Vida. Disponível em:www.sistemica.com.br/docs/artigo_rose.doc. Acesso em 29 de Jun de 2012.

TORRES, W. C. A Bioética e a Psicologia da Saúde: Reflexões sobre Questões de Vida e Morte. Psicologia: Reflexão e Crítica, 2003, 16(3), pp. 475-482. Disponível emhttp://www.scielo.br/pdf/prc/v16n3/v16n3a06.pdf Acesso em 11 de mar. de 2012.