Durante o meu estágio em Psicologia e Processos de Promoção de Saúde, no CAPS II de Palmas, co-coordenei um grupo de leitura, no qual utilizei a metodologia da auto-gestão. Este dispositivo foi desenvolvido pela Análise Institucional, onde de maneira bem simplista, os próprios participantes resolvem as suas questões. Acredito que esta metodologia possibilite a autonomia, pois o próprio grupo se gerencia. Neste contexto, Rocha entende que a autonomia “é um exercício permanente de análise e compreensão das condições em que se realiza a ação e, neste sentido, dos seus limites e possibilidades” (ROCHA, 2006, p.171).
No decorrer do grupo fomos proporcionando aos sujeitos envolvidos no mesmo, incluindo eu, situações em que pudessem opinar no movimento grupal, escolhendo os temas, trazendo materiais para a realização deste. Tensionar este movimento foi desafiador, pois além de modificar o movimento do grupo, era preciso desenvolver isto também na instituição, uma vez que os profissionais agiam no grupo de maneira que proporcionava uma dependência, práticas de poder e divisão de subgrupos (os profissionais e os usuários). Diante da idéia de, juntamente com usuários que participavam do grupo, decidirmos sobre o modo de funcionamento bem como fazer acordos e compromissos, alguns profissionais acreditavam que os usuários do serviço poderiam esquecer o compromisso e, por isso, deixavam a prática da auto-gestão em troca de uma prática direcionada que, mais pela configuração técnica do que por intencionalidades profissionais, caracterizavam-se como prescritivas. De fato, as pessoas podem esquecer de compromissos, mas isso não justifica relações burocráticas.
Os CAPS’s surgiram e ainda surgem com o objetivo de mudar as relações em torno de quem possui um intenso sofrimento mental. Relacionar-se com as pessoas, criando situações em que todas elas, independente da categoria em que são classificadas (profissionais, usuários, familiares), possam apropriar-se, mesmo que poucamente, da gestão das próprias relações, da própria existência é uma maneira coerente de produção de cuidado, condizente com os princípios da Reforma Psiquiátrica e com as reflexões da Psicologia.
Todavia, e ao mesmo tempo, não se tecem aqui nessas linhas, desconsiderações acerca da dificuldade que profissionais que trabalham nos serviços substitutivos possuem no cotidiano de trabalho. Esse relato serve apenas para compartilhar experiências e refletir sobre o campo da saúde mental. Ações em grupo com característica prescritiva colocam o profissional como o detentor do saber e menosprezam o conhecimento dos usuários. Isto é justificado com os diplomas de graduações que o legitimam como especialista do saber de uma determinada área, no caso da saúde mental.
Logo, apenas os profissionais sabem como “curar os transtornos mentais”. Este pensamento vigora no discurso dominante que não necessariamente seja o correto ou incorreto, somente um discurso que entende os usuários como não- responsáveis e não- comprometidos, retirando-lhes oportunidades de significarem suas próprias existências.
No início do estágio, nos encontros do referido grupo, os usuários participantes deveriam chegar no horário a fim de participar do grupo e conversar sobre os temas propostos pelos profissionais. Esta configuração propõe ao usuário papeis pré- determinados e submissões às normas estabelecidas no grupo, sem muita possibilidade de serem ativos no processo.
No entanto, um dia utilizei do poder dado pela minha supervisora de campo de coordenar o grupo e, para sair do movimento instituído, combinei com o grupo que um determinado membro (usuário do CAPS, que aqui chamarei de Afonso) seria o responsável para trazer um texto a respeito do tema escolhido para o próximo encontro, ou seja, no encontro de uma semana depois. Afonso chegou com o texto, porém atrasado. Pediu desculpas e assim foi quebrado o estigma que os circundavam.
Diante desse encontro iniciei um processo de, em três encontros consecutivos do grupo, sentir raiva e também a sensação de que não estava desempenhando a minha função de coordenar o grupo. O método que utilizamos era ler o texto e discuti-lo. No espaço de fala de todos, eu me pegava várias vezes abrindo a boca com a finalidade de enunciar algum conteúdo, mas era interrompida com a intervenção de outro usuário. Comecei a sentir que eu perdia a função de coordenadora. Então, percebi que os usuários estavam participando mais do grupo e eles mesmos estavam se resolvendo, pensando em seus conflitos, significando a existência que ali mesmo ocorria, no encontro de corpos, na troca de afetos. Mas mesmo assim, ficava me questionando sobre o que estava fazendo naquele grupo: será que precisavam da minha presença como estagiária de psicologia. Enfim, havia perdido um dos meus instrumentos de trabalho: a palavra.
De repente me dei conta que, na verdade, a vida gerada pela troca dialógica entre as pessoas, que num momento frustrou-me, era, na verdade, resultado do meu trabalho em conjunto com os outros participantes do grupo. A perda da fala era decorrente do ganho de uma possível autonomia, de todos, inclusive a minha. As pessoas do grupo auto-gerenciavam as relações ali estabelecidas. Enfim, sofria por algo sobre o qual eu era diretamente responsável e que era meu objetivo. Às vezes, o desejo vem transvestido e não o percebemos tão próximo da gente. Ainda bem que pude enxergar antes de propor uma nova mudança no movimento grupal.
Além disto, pude notar que a submissão que observava em seus olhares e gestos era apenas uma das multiplicidades que poderia enxergar naqueles sujeitos, mas existia possibilidades autonomia, felicidade e tantos outros.
Referência
ROCHA, Marisa Lopes da. Psicologia e as Práticas Institucionais: A Pesquisa- Intervenção em Movimento. Psico. v. 37, n° 2. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2006. p. 169-174.
Nota: O texto foi produzido sob a orientação do Prof. Victor Melo no Estágio em Prevenção e Promoção a Saúde no curso de Psicologia do CEULP/ULBRA.