A Hegemonia do Pensamento

Somos mesmo uma caixinha de segredo. Como pode uma jovem, bonita e estudiosa, no término do curso de medicina, do nada, parar no tempo?

Em um dia qualquer rotineiro de sua vida, essa jovem teve uma emoção muito forte, que mudou completamente  sua visão de mundo, de seus sentimentos e pensamentos em relação à vida, apresentando mudanças do humor. De imediato ficou calada, inquieta, tentava explicar alguma coisa, mas, suas justificativas eram sem nexo. Apresentava alteração do juízo da realidade, assustava-se com barulho e presença de outros que não fossem os mais próximos. Fechava-se em ambiente escuro e muitas vezes se escondia debaixo do leito. Completa inapetência.

Foram meses de agonia e tristeza para todos da casa. Seu físico se definhou, não sorria e seu olhar era profundo e fixo em quem com ela falava. Sentia que tentava passar algum sentimento escondido. Tentando sair dessa agonia e se mutilou com lâmina de bisturi, na altura do seio. Perguntei-lhe o motivo desse ato e ela me disse que tinha um desejo em saber como era a vida após a morte, mas a dor a impediu de continuar. Relembro como se fosse hoje ao relatar esse caso, ainda sinto o cheiro forte de sangue em minhas narinas.

Certo dia ela passou do humor calmo para o agitado. Magicamente, a força retornava e muitas idéias surgiram, meio que atrapalhadas, mas – no contexto em que se encontrava – todas eram bem vindas. A vontade de tudo renascia como se fosse uma criança, cheia de quereres e de poderes. Dever, ou não, já não era mais a questão. O querer e o poder já eram o bastante. Manipular tudo era o máximo!

Foi levada para uma clínica de doenças mentais sob efeito de medicamento. Ao despertar, sua euforia foi tamanha que tiveram que imobilizá-la no leito e medicá-la para contê-la. Em resposta ao trauma sofrido, a jovem relata:

“Entro em um lugar hostil e aos poucos caminho, acorrentada numa energia que não é a minha. Ouço um barulho avermelhado que se distancia e à medida que adentro neste castelo branco as cores somem e vejo sombras. Além de angústia e solidão que pairam no ar. A música já não tem melodias e o ruído e gritos distantes me apavoram. Corredores sem fim e portas trancadas me deixam com muito medo. Sinto-me embaraçada nos meus próprios braços e ando sem querer. Estou tonta e o meu corpo dói. Sentia-me presa, mas estava presa mesma! E a família pouco me visitava, pois o sistema era fechado e tinha hora pra tudo. Mal podiam saber o que eu sentia por dentro, pois só viam o “por fora”. Os doutores queriam me curar, e eu queria era falar e ninguém me escutava. Sentia que os olhares eram todos pra mim, e que mudanças podiam acontecer a qualquer instante. Imagino um dia acordar e me ver num lugar diferente, onde eu possa ir para casa e voltar quando eu achar melhor. Ser tratada com dignidade e enxergar as cores das coisas. Poder aprender com outros que sofrem como eu, e quem sabe, ensinar quem precisa. Ver um mundo colorido, de música e formas como nunca vi antes e novamente ver minha casinha, com todo o mundo que eu preciso lá dentro.”

Dias se passaram e ela voltou ao convívio dos demais e às atividades diárias, com o apoio de profissionais da saúde, com terapias, medicamentos e diagnóstico de transtorno afetivo bipolar. Hoje, questiona sua internação, indaga o porquê de ter passado por uma situação tão traumática em vez de utilizar outros métodos de apoio.

Mediante isso, pode-se ressaltar por quanto tempo a medicina se ocupou da doença e se esqueceu dos sujeitos, que ficaram apenas como hospedeiros das mesmas. Por outro lado, enaltece-se agora a rede psicossocial e a equipe multidisciplinar que se configura. Cada vez mais, o papel do psiquiatra soberano sai de cena e a dinâmica dos serviços se mostram numa razão igualitária.

A realidade ainda, porém, é que nem todos pensam assim: mesmo nos dias de hoje, há pessoas que lidam com casos envolvendo transtornos psiquiátricos como pré-históricos. Por qualquer motivo que seja diferente dos padrões da sociedade, levam os pacientes diretamente à internação, taxando-os de loucos, sem sequer pensar em procurar ajuda primeiramente em um CAPS ou buscar um psicólogo, dentre outros. Direcionam-se por uma maneira mais rápida e prática, talvez até por falta de conhecimento ou não, mas a primeira opção é a internação.

Será que depois de tantas manifestações e do desmantelamento progressivo dos manicômios, a população ainda pensa dessa maneira? Será que não serviram de nada as lutas e conquistas na área psicossocial? Uma pessoa que pode conviver com seu “problema” no meio da sociedade, não precisa ficar trancada entre quatro paredes, se sentindo solitária e excluída de tudo e de todos. Vislumbra-se outra possibilidade, mais humanitária, respeitosa para com o ser humano e seu sofrimento: a ajuda psicossocial, multi e interprofissional, com o CAPS, psicólogos, psicanalistas, terapeutas ocupacionais, psiquiatras e, principalmente, o apoio familiar, o suporte social.

Tem-se que mudar pensamentos arcaicos, de que qualquer alteração que fuja ao padrão do que é ser normal, instituído pela sociedade, seja loucura e de que tudo seja motivo para internação. É salutar o tratamento medicamentoso, combinado com o auxílio na educação do paciente e de sua família, tendo como propósito a recuperação e a adaptação à doença.


Nota: o texto é resultado de uma atividade da disciplina de Psiquiatria do curso de Medicina do ITPAC – Porto.