“é como se fosse imortal porque esta morte que o olha não sabe como o há-de matar” (Saramago, As Intermitências da Morte, p. 154)
Rua Tocantins, Paraíso do Tocantins, estado do Tocantins – local onde por muito tempo viveu uma imortal. Alguém que conheci na infância, no tempo em que acreditava que as pessoas eram como peças de barro, logo poderia moldá-las e recriá-las à minha imagem e semelhança. Sim, tinha crenças grandiosas na infância e uma esperança digna dos loucos. Essa senhora, que já era velha quando a conheci, parecia viver com uma quantidade reduzida de variáveis, não parecia refletir sobre o sol, as estrelas, o movimento do mundo, o ser e o nada, apenas andava sobre o chão, batia em seu neto (se achasse necessário), comia sua farofa, alimentava suas galinhas, mostrava-nos sua palmatória.
Na infância tinha um clube, que obviamente foi criado embasado em um objetivo grandioso: transformar a rua, a redondeza, o Paraíso em um local de paz, justiça e alegria. Mal sabia eu, naquela época, que um local assim seria o inferno para minha constante agitação mental. Um dos ideais heróicos do clube, que se intitulava “Laços da Amizade”, era criar mecanismos para sensibilizar o coração de pedra da minha vizinha, a imortal.
Hoje, ao abrir o caderno de anotação do grupo, vejo que esse ideal permanece lá, ingênuo e presunçoso como a maioria dos ideais e, consequentemente, não finalizado. A minha vizinha imortal continuou sua rotina de olhar para o mundo a partir do seu conjunto de variáveis (que na minha presunção inicial descrevi como reduzido). O neto cresceu e se foi. Apenas a filha continuou por perto.
Os anos deslizaram-se através do tempo e a velhice da vizinha, que antes era observável de forma natural, passou a ter um reflexo assustador. Víamos um corpo na cama, no sofá, na cadeira. Um corpo opaco, quase um mero esqueleto. Minha fraqueza e, talvez, meu egoísmo não me permitiram visitá-la, tinha as palavras de Saramago em minha mente: “não há nada no mundo mais nu do que um esqueleto”. E acho que temia ver minha vizinha desnudada, nítida, sem as capas que fizeram dela o “coração de pedra” que me provocava calafrios na infância.
O livro “As Intermitências da Morte”, de Saramago, começa com a absurda constatação de que em um determinado dia “ninguém morreu”. Quando o li pela primeira vez lembrei-me da minha vizinha, de quantas vezes meu pai e vários outros da rua foram chamados para seu suposto “último momento”. Quantos foram aqueles da Rua Tocantins, do Paraíso do Tocantins, que participaram ativamente dos “últimos momentos” da minha vizinha e depois partiram antes dela. Viraram pó e, acredita-se, descansam em paz. A paz que eu estranhamente almejei na infância, mesmo que sentisse medo do céu por achá-lo diferente do meu Paraíso.
Penso na Morte com seu velho caderno de anotações, amarelado pelo tempo, com os nomes de todos nós. Talvez minha vizinha fosse especial e tenha tido seu nome destacado em amarelo. Então, o nome se confundiu com a folha envelhecida do caderno da Morte e, assim, ela foi esquecida e seu corpo foi se desfazendo sobre o chão enquanto que, pareceria mais natural, se isso ocorresse embaixo da terra.
Hoje a Morte, numa dessas coincidências da vida, deve ter deixado seu caderno cair e, se pudesse ousar mais em minha dedução, diria que a página que ficou aberta sobre o chão era a tal página na qual foram escritas as letras destacadas em amarelo. Mesmo que sua anotação estivesse quase imperceptível, o recado em uma última tentativa de ser notado sussurrou para a Morte o nome da minha vizinha.
Neste domingo quente de um Paraíso que parece só existir em minha mente, minha vizinha morreu. E assim mais uma verdade da minha infância foi refutada: morreu uma Imortal.
Que ela descanse em Paz… (ainda que hoje eu não tenha a mínima ideia do sentido dessa palavra)
Foto: Irenides Teixeira