Ao receber o convite para escrever tal artigo, pensei em várias possibilidades e olhares sobre o mesmo fenômeno. Porém, ao final de cada verificação de possibilidades, cheguei a conclusão do quanto lacunar é a relação dos afetos no universo feminino, ao tempo que, desde já, deixo claro que estarei tratando da grande maioria feminina.
Há muito tempo atrás, numa terra muito distante, vivia um rei e uma rainha cujo maior desejo era ter um filho, que vieram a conseguir após rogar muito. Nasceu naquele reino uma bela menina e o rei fez uma grande festa para comemorar seu nascimento. Todos foram convidados pelo rei: amigos, parentes, nobres e também as fadas do reino.Todas menos uma: a décima terceira fada do reino.
O simbolismo desde já rodeia tal universo onde o número 13, mesmo representado por uma fada, exerce seu estigma de maior valor.
Inconformada por não ter sido convidada, a 13ª fada do reino, aparece na festa inesperadamente e lança sobre a criança a seguinte maldição: “Quando tiver quinze anos, a princesa espetará a mão em um fuso de fiar e cairá morta”.
Não tendo como desfazer por completo a maldição lançada pela colega, as fadas fizeram uma magia que iria impedir a morte da criança, porém ela adormeceria em sono profundo por cem anos. A criança cresceu sendo protegida todo o tempo, o tempo todo.
A relação de fragilidade e insegurança estabelecida para figura feminina em formação, para que, nada nem ninguém possam fazer-lhe mal, mesmo que um mal anunciado. Assim, os pais a rodeavam de proteção para que espinho algum pudesse penetrá-la, tentando ir de encontro ao que nem as fadas amigas conseguiram desfazer. Ou seja, a penetração do espinho é certa, remediado apenas a consequência de tal ato.
O tempo passa e quando dos seus quinze anos completados. Lembramos que essa idade é socialmente conhecida por um rito de passagem chamado debutante, que significa iniciante ou estreante onde a jovem é apresentada à sociedade. A partir daí, a mesma pode frequentar reuniões bem como usar roupas adultas.
A princesa, por curiosidade, foi até o alto da torre do castelo. Chegando lá, encontrou uma senhora com um fuso, fiando linho, e quis aprender a fiar também.
Ao tocar o fuso, feriu-se e caiu em um sono profundo, estendendo assim a maldição para todos no palácio. Em torno do castelo, uma cerca de espinhos começou a brotar e crescer sem controle, tornando-se espessa dia após dia.
Após alcançar idade de 15 anos, a Princesa, movida pela curiosidade, tem contato com o objeto proibido camuflado na máquina de tear. O espinho – nesse caso, qualquer especulação sobre o espinho como objeto fálico ou até mesmo como veículo para o primeiro sangramento feminino, iniciando os ciclos menstruais, seria mera especulação.
Nos reinos vizinhos, espalhou-se a história da Bela Adormecida, como passaram a chamar a princesa.
Assim, tempos em tempos, príncipes surgiam tentando chegar até o castelo, mas logo desistiam por conta do espinheiro vasto e denso que o tomava, restando aos poucos que insistiam seguir em frente, o encontro com a morte. Após quase cem anos de espera, eis que surge um corajoso príncipe, decidido a ver a bela princesa adormecida. Quando se aproximou do castelo, o príncipe não viu espinhos, e sim milhares de flores que o deixavam passar ileso.
Aqui, encontramos o amor em representação simbólica da transformação do olhar, na superação dos obstáculos, frente ao objeto desejado, tendo o termo Belo, significado atrativo para o desafio, além do título de nobreza e é claro, o fato de estar adormecida, caracterizando total entrega e fragilidade. Porém cabe aqui um questionamento: os príncipes precedentes não alcançaram êxito por não amar verdadeiramente a Bela Princesa? Caso a resposta para tal questionamento seja positiva, não seriam os espinhos uma espécie de protetor contra os falsos sentimentos?.
Entrando no palácio, o príncipe percebeu que todos, assim como a princesa, adormeceram. Continuando sua busca pela princesa, alcançou a torre, deparando-se com a Bela Adormecida. O apaixonamento foi instantâneo, pois sua beleza fazia jus aos boatos que corriam nos reinos vizinhos. Então, aproximou-se da princesa e curvando-se, beijou-a.
Ao sentir os lábios de seu salvador, Bela Adormecida acordou, despertando também todos do palácio, encarando o príncipe com doçura e carinho. Afinal, foi o príncipe que desfez a maldição, o príncipe encantado. Pouco tempo se passou e, a quase centenária conservada, a Bela Princesa e o príncipe se casaram, com uma grande festa promovida pelo rei e assim, o casal viveu feliz para sempre.
Não é de agora que se estabeleceu na figura feminina o lugar da submissão, da espera do salvador, o lugar de aguardo por alguém que não se sabe quem e/ou se existe, mas de alguma forma irá surgir. Na construção da mulher pré-histórica, as famílias dividiam-se em grupos com o objetivo de se protegerem contra as adversidades naturais e silvestres das regiões que habitavam; mas também na possibilidade de fortalecerem socialmente às construções familiares, onde o homem é representado pela imagem do Coletor/caçador (macho-alfa) e a mulher, a dona da caverna e zeladora dos filhos. Portanto, o homem saía para a caça e coleta, enquanto a mulher permanecia na caverna a cuidar de filhos em meio a todos os perigos que a rodeava, desenvolvendo assim, além de uma visão periférica e habilidade de executar várias tarefas ao mesmo tempo, cultivava uma irreparável lacuna estabelecida na relação “falta x espera”, representada por movimentos de carência do protetor ausente.
Desde então, podemos observar que a jornada de trabalho da mulher ainda na pré-história é tripla, visto que, quando da ausência do macho-alfa, cabia a ela também a vigília nas noites frias e ameaçadoras. Todavia, quando do retorno do macho-alfa, era dela também a responsabilidade de cuidar e servi-lo. Além disso, dos momentos restantes, a constante procura do preenchimento da lacuna (espera) concorria com o assédio das crias, sedentos de atenção e informações fantasiosas sobre o teor das caçadas brutais. Estas, comumente representadas por figuras rupestres, demonstrando que o lúdico já era utilizado para exercer a comunicação.
Guardada as devidas proporções, essa estrutura de percepção de agrupamento e estruturação familiar só passa a sofrer modificações significativas, após a Revolução Industrial, quando a mulher explode com a passividade e adentra ao mercado de trabalho, reivindicando seu espaço de coletora/caçadora e iniciando assim, um movimento feminista, passando a reivindicar direitos e deveres, bem como uma visibilidade social equivalente entre os gêneros.
Apesar de cada vez mais ocupar lugares de extremo destaque social (até bem pouco tempo só ocupadas por homens) a mulher, em sua grande maioria, continua no movimento de busca e/ou espera pelo par ideal, a banda da laranja, a alma gêmea, o príncipe encantado. A relação de falta (carência) no campo dos afetos parece ser de ordem existencial, significando que, mesmo a mulher tendo êxito em sua vida profissional, com uma família estável e em muitos casos com um parceiro por muito tempo, ainda assim, pode encontrar tal falta representada pela incoerência do real com o idealizado, em sua vida.
A figura masculina ainda representa a segurança tão almejada pelas mulheres, não só nas relações como na vida. Ainda que a mulher atualmente seja independente financeiramente e ocupe espaços antes pertencentes somente aos homens, há uma necessidade da figura masculina para a completude da felicidade. É como se a grande competência da mulher fosse atestada pela capacidade que ela tem de ter um namorado ou um marido. Não é incomum ouvirmos críticas à vida pessoal de mulheres bem sucedidas profissionalmente, onde se questiona tanta competência profissional, se a mesma continua só. O que atesta a ideia de como a sociedade ainda tem um estigma forte em relação a mulher que está sozinha. A própria mulher se sente incompetente diante dessa situação, mantendo um alto nível de cobrança para consigo mesma, o que culmina na maioria das vezes em grande frustração.
Atualmente, no Brasil, a formação de pares passa também por uma questão demográfica, uma vez que o País tem um número muito maior de mulheres do que de homens, o que dificulta o encontro de um parceiro que esteja livre para assumir uma relação (o suposto príncipe encantado). Ao contrário do que se deseja e idealiza, o que se tem são sapos cururus (homens casados, ou com algum outro tipo de comprometimento com outras parceiras, cheios de defeitos difíceis de conviver), onde as “princesas” investem grande parte da sua energia e do seu afeto, beijando-os incansavelmente, na tentativa de transformá-los em príncipes.
Referência:
Grimm, J. & Grimm, W. (2008). Contos de Grimm. v. 16. Traduzido por David Jardim Jr. Belo Horizonte: Vila Rica.