Publicada pelo selo DC Vertigo, A Casa dos Sussurros (2018) veio pelas mentes de Nalo Hopkinson, Dan Watters retratando um novo grupo de seres místicos e divinos relacionados ao universo de Sandman, do autor Neil Gaiman. Nesse caso, os personagens se relacionam com a ancestralidade Iorubá, onde os protagonistas são algumas das divindades cultuadas pelas vertentes religiosas afrodescendentes na região da Louisiana – mais especificamente para o contexto da história em Nova Orleans.
A história dos habitantes da Casa dos Sussurros começa em uma foz pantanosa em outro mundo, outra dimensão. Ali, no Barco-Casa de nome já citado, vive a divindade Erzulie Frèda Dahomey, que assim como nos ramos africanos, no Voodoo Haitiano é uma Loá do amor, beleza, jóias, dança, luxo e flores. Ali na casa, os seguidores e devotos de Frèda, quando adormecem pensando em sua senhora vão visitá-la em sua festa particular; durante toda a noite os banquetes e a música são intermináveis e cada fiel tem a oportunidade de conversar diretamente com sua senhora e pedir auxílio, favor ou acalento.
Nos primeiros capítulos é possível observar essa relação da protagonista com seus adoradores; primeiramente recebe a visita do Loá dos crocodilos e personagem folclórico regional, Tio Segunda-Feira, este que vai caminhar ao lado dela durante toda a trama, auxiliando-a, pois além de devoto é fisicamente atraído pela deusa. Também deve lidar com seu sobrinho, chamado Shakpana, que nesse universo é o Loá responsável pelas curas e pelas doenças, deus das pandemias.
Shakpana perdeu seu diário no mundo dos mortais, neste continham conceitos de várias doenças incuráveis, e isso leva a uma série de eventos que vão ameaçar toda a humanidade. A partir daí a história se desenrola de maneira intrincada; a deusa e sua casa-barco são retiradas de seu domínio devido a acontecimentos decorrentes da história do Sonhar (2018). Uma fratura em seu domínio de poder, sua dimensão particular, a faz ir parar no reino do Sonho dos Perpétuos, onde esta perde contato com seus adoradores e se vê fraca, quase morrendo, pois ela depende dessa energia ligada a seu culto.
Enquanto isso, no mundo mortal, tanto os servos de Erzulie, quanto seus pares divinos estão à sua busca; Agwe, seu marido, acompanhado de Damballa e Ogum, outros Loás venerados se movem nessa procura. O primeiro volume termina com a apresentação dessas divindades e a consolidação de Shakpana como antagonista. Cada uma dessas divindades representa um aspecto da cultura Iorubá, um domínio divino, um arquétipo de conceitos e ideias.
Sincretismo e Adaptação
Primeiramente vale contextualizar alguns termos importantes para a espiritualidade em questão. No voodoo e em práticas espirituais derivadas da cultura Iorubá, temos o conceito de Loá. Este seria um termo para designar seres sobrenaturais, divindades e santos adorados pelos praticantes:
Loa, em créole lwa, é o nome dado às divindades cultuadas no vodu. As definições são variadas na literatura, em comum, no entanto, encontramos que trata-se de espíritos, que podem ser ancestrais ou santos. Há um sem número de sinônimos adotados para o termo lwa, tais como sen (santo) ou, no plural, sen yo, zanj (anjo) ou djab (diabo), mistè (mistério) e sprit (espírito). (BAPTISTA, 2012, p.20)
Compreendendo o que são os Loás, compreender sua classificação também é fundamental. Existem duas vertentes de seres espirituais para o voodoo e derivados, sendo estes os loá Rada, Petro e Ginen. Dois destes são considerados espíritos de origem africana, espíritos ligados à terra ancestral, estes são os rada e ginen; os de denominação petro estão ligados ao novo mundo, seriam, pois divindades surgidas nas colônias, de origem crioula – são considerados agressivos e seus ritos mais nefastos:
De certo modo os chamados loas petro, muito mais violentos e agressivos, são invocados para os trabalhos “mais pesados”, ou para a feitiçaria mesmo, e sua origem é créole, em oposição aos loas rada (de Arada ou Alada cidade do Daomé) que seriam “africanos”. Nesta classificação aparecem também os loas ginen, também africanos devotados aos trabalhos de cura e de contra-feitiçaria. Ao contrário daqueles, cuja natureza permite operar para o bem e para o mal, estes apenas atuam para o bem e se recusam a fazer o mal. (BAPTISTA, 2012, p.277)
Devido ao fenômeno da colonização, a escravidão de povos africanos foi difundida entre as principais nações colonizadoras, o que resultou no deslocamento desses indivíduos por todo o chamado Novo Mundo. Da América do Norte, passando pela América Central (principalmente no Caribe), à América do Sul esse povo foi arrastado contra sua vontade, violados e inseridos em locais diferentes da sua cultura natural e que os maltratavam de maneiras inconcebíveis. Mas a cultura Iorubá lutou com unhas e dentes e sobreviveu em meio as tentativas de assassinato desta.
(…) o Candomblé, a Umbanda, o Xangô e o Batuque no Brasil. Tenho estudado também a Santería ou Ocha e Palo Mayombe, religiões de Cuba e de todo e qualquer lugar nas Américas em que a música cubana ou latino-caribenha estiver. Às vezes, comparadas ao Vodou do Haiti, estas religiões se caracterizam tanto pela prática de oráculo quanto por seus rituais de transe, cura e sacrifício. São religiões com um ritual muito rico e extraordinariamente belo, com música e dança sagradas. (MATORY, 1998, p.263)
Dessa forma, é possível notar que muitas vezes de maneira sincrética, a cultura Iorubá sobreviveu pelo mundo, transformando e adaptando seus símbolos dentro das culturas em que se introduziu; também é notável que seus símbolos se assemelham a diversas outras culturas e isso se mostra na maneira como seus deuses e espíritos são retratados.
Os Paralelos Arquetípicos
Se tratando especificamente da obra de Nalo Hopkinson, ela adapta os seguintes Loás: Erzulie, que aparece em sua forma Fredá, que corresponde ao ramo rada para a loá do amor, beleza, jóias, dança, luxo e flores; e seu outro aspecto, do ramo petro aparece posteriormente como sua forma Dantor, que pela autora é dita como a Mãe Protetora, no voodoo também é conhecida como loá das mães solteiras. Erzulie se enquadra no arquétipo feminino, de delicadeza, sedução, na cultura grega ela encontra analogia em Afrodite e dantor, como mãe protetora tem uma analogia ocidental na Virgem Maria, Nossa Senhora de Lourdes, ou mais especificamente na Madona Negra de Czestochowa, padroeira europeia levada ao Haiti por soldados poloneses retratada em pinturas exatamente como Erzulie.
Tio Segunda-Feira, retratado como um deus crocodilo e servo de Erzulie, é um mito voodoo que pode ser análogo a Sobek, no Egito, cuja forma é um homem com cabeça de crocodilo que, ao transpirar, alimenta as águas do Nilo com seu suor. No folclore brasileiro temos a figura da Cuca, como ser humanoide reptiliano que costumava devorar crianças desobedientes.
Shakpana, é retratado como o loá das doenças e da cura e para os Iorubá – conhecido também como Sopona – seu nome está ligado a varíola, seus adoradores pintavam sua pele com pintas brancas para representar a doença. Em seu simbolismo e na trama de Hopkinson, se comporta como trickster, semelhante a Hermes, ou Loki, ele mantém a trama em movimento, agindo hora com boas intenções, hora dominado por seus aspectos sombrios e trazendo a doença fatal que motiva a jornada de Erzulie.
Agwe (ou Agué no voodoo haitiano) é o loá que governa o mar juntamente a sua fauna e flora, na trama da HQ, é um dos cônjuges de Erzulie, e seu paralelo cultural pode ser encontrado em Poseidon ou Netuno greco-romanos, Aegir para os nórdicos ou mesmo Susanoo para o Xintoísmo Japonês.
Ogum, loá do ferro, guerra, caminhos, caça, tecnologia e protetor de artesãos e ferreiros. Na HQ um dos cônjuges, pode ser colocado lado a lado com divindades como Angra dos Tupi-Guarani, Hefesto ou Vulcano greco-romano ou mesmo Agni para os hindus.
Esse fenômeno antropológico também reforça as noções de arquétipos e ancestralidade, onde fica evidente que é possível traçar um paralelo arquetípico entre as divindades e seres míticos de culturas atemporalmente. O exemplo resultado da diáspora negra confirma isso nessas práticas religiosas que perduram até hoje e sua simbologia pode ser colocada em paralelo com diversas culturas ao redor do globo.
REFERÊNCIAS
BAPTISTA, JR de C. Sè tou melanje: uma etnografia sobre o universo social do vodu haitiano. Rio de Janeiro, Brasil: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.
DE HEUSCH, Luc. Kongo in Haiti: a new approach to religious syncretism. Man, p. 290-303, 1989.
MATORY, J. Lorand. Yorubá: as rotas e as raízes da nação transatlântica, 1830-1950. Horizontes antropológicos, v. 4, p. 263-292, 1998. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ha/a/gXdf3gXQczbgGVRzWPMjq7f/?lang=pt>