Falcão e o Soldado Invernal: o sonho americano pode ser transmitido?

É curiosa a trajetória do Capitão América como um símbolo norte-americano. Concebido por Joe Simon (1913-2011) e Jack Kirby (1917-1994), a primeira encarnação do herói vem na pele de Steve Rogers. Sua origem nos quadrinhos, em The Avengers #4 (1964) é similar a apresentada no filme Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), um jovem franzino, frágil e debilitado, com muito amor por sua pátria deseja adentrar o exército norte-americano para combater as forças do Eixo em plena 2ª Guerra Mundial, um clássico herói da era de ouro dos quadrinhos.

Sem aptidão física, mas com muita determinação, um membro de alta patente enxerga potencial no garoto e o transforma em voluntário para o projeto do Soro de Supersoldado, isso tudo leva o personagem a se transformar no super humano conhecido como Capitão América. Isso, no entanto, não quer dizer que ele foi o primeiro a vestir esse manto. No mundo entroncado das editoras de quadrinhos onde os roteiristas vêm e vão, modificando as histórias e o passado dos personagens com frequência, era de se esperar que isso fosse acontecer e antes de Steve Rogers outro homem vestiu as roupas e o escudo icônico do herói – mas mantenha esse fato em suspensão.

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Anos após a criação de Rogers, em Captain America #117 (1969), um dos primeiros heróis negros seria apresentado ao mundo, este era Sam Wilson, de alterego Falcão. No universo cinematográfico Marvel contemporâneo, Wilson seria apresentado no filme Capitão América 2: o Soldado Invernal (2014), um militar de carreira, que fazia missões aéreas arriscadas. A partir daí eles construíram uma relação de amizade e companheirismo, culminando no fim do filme Vingadores: Ultimato (2019), onde Steve decide – após viver longos anos de uma aposentadoria e um casamento feliz que envolve uma viagem no tempo e muito roteiro complexo – passar o manto de Capitão América para Wilson.

Esse ato simbólico, que na cena em questão é muito característico por um Capitão, em forma de idoso, longevo e sábio, passando o escudo, um item poderoso e significativo carregado de significados para um Sam jovem e relativamente inexperiente; o Mestre que passa o item chave e seus conhecimentos para o aprendiz. Esse fato culmina na trama do seriado Falcão e o Soldado Invernal, que vai tratar da recusa de Sam Wilson ao chamado a Jornada do Herói.

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O Arquétipo do Herói e a Recusa ao Chamado de Sam

Joseph Campbell (1904-1987) trabalha e disserta meticulosamente acerca do arquétipo do herói em seu livro “O Herói de Mil Faces” (1949). Neste livro, que antecede porém converge com as idéias de Carl Gustav Jung em “Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo” (1959), o autor discorre acerca do monomito (jornada do herói), sendo esta uma narrativa plural e universalmente presente em todas as culturas, de maneiras diferentes de acordo com as influências de cada local. A jornada se dá em doze passos, fundamentais para o desenvolvimento do personagem, e crescimento individual, culminando na conclusão heróica de sua jornada.

Os passos dessa jornada, descrita por Campbell (2004) seriam em um primeiro ato: o Mundo Comum, o Chamado à Aventura, a Recusa do Chamado, o Encontro com o Mentor e a Travessia do Primeiro Limiar. A ordem dos fatores pode variar de acordo com as histórias, mas sem a alteração do produto. No caso de Sam Wilson vemos sua jornada como herói ser estabelecida em sua atuação como Falcão, porém ao ser defrontado com o manto de Capitão América, a responsabilidade e o significado do escudo o desmotivam a prosseguir.

No seriado Falcão e o Soldado Invernal (2021) é possível observar a continuidade desse processo, pois a série trata das consequências dessa fuga de Sam. Toda uma conjuntura é estabelecida, com a série tomando ponto de partida diretamente após a cena final de Vingadores: Ultimato (2019). Sam recebe o escudo, mas a única frase que consegue pronunciar acerca dele é “Parece que pertence a outra pessoa”.

Ricón (2006) descreve o processo da recusa como “o herói reluta em empreender a jornada”; Sam não somente recusa o manto de Capitão América como entrega o escudo, item emblemático, ao governo americano, ato que vai mover sua história ao longo dos episódios, pois vai sempre ser lembrado pelos personagens coadjuvantes que Steve Rogers o escolheu por bons motivos.

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O Capitão que a América precisa

Nos capítulos finais da série, Sam Wilson deve lidar com seus demônios. A situação familiar na casa mundana do herói é uma analogia bonita para toda a narrativa complexa envolvendo super seres e política fantasiosa. Em sua casa no estado de Louisiana, uma problemática com o barco que pertenceu a seus pais, que está estragado e precisa ser vendido por sua irmã, é um dilema complexo.

Ao investigar mais a fundo o legado do Capitão América, descobre a trágica história de Isaiah Bradley, o primeiro a testar o soro de Supersoldado e a vestir o manto de Capitão América, um homem negro, que foi usado, injustiçado e logo após apagado da história como muitos outros semelhantes. Teria ele o ímpeto, como um homem negro que também é, de vestir o manto que representa um país que causou tanto sofrimento a seus semelhantes? Bradley revela a ele as atrocidades da guerra e impõe mais peso nos ombros de Sam.

 

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“O percurso padrão estabelecido por Campbell para a aventura mitológica é representado nos rituais de passagem: separação, iniciação e retorno. Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais, onde encontra forças e obtém uma vitória decisiva, o herói volta de sua aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. O herói composto do monomito é uma personagem dotada de dons excepcionais, frequentemente honrado pela sociedade de que faz parte, costuma também não receber reconhecimento ou ser objeto de desdém.” (GOMES, 2009, p.5)

O sofrimento do povo negro representado em Bradley, sua relação de amizade com Bucky Barnes e observar o mau uso que o governo fez do legado de Steve Rogers, o motivam a retomar sua jornada pessoal de heroísmo e o impulsionam a assumir outra Persona. Morre o Falcão e nasce um novo Capitão América. Sam finalmente é capaz de se libertar da fixação na fuga da jornada.

 

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REFERÊNCIAS

CAMPBELL, Joseph. Herói de Mil Faces, O. Cholsamaj Fundación, 2004.

GOMES, Vinícius Romagnolli Rodrigues; ANDRADE, Solange Ramos de. Um retorno aos mitos: Campbell, Eliade e Jung. Revista Brasileira de História das Religiões-ANPUH-Maringá (PR) v, v. 1, 2009.

RICÓN, Luiz Eduardo. A jornada do herói mitológico. In: SIMPÓSIO DE RPG & EDUCAÇÃO. 2006. p. 2-4.