As histórias e estórias sobre a hipnose e sua relação com a “terapêutica pela fala”, e portanto com a Psicologia, são controversas. Giram em torno do incômodo da Psicologia, no uso da hipnose, de ficar a meio caminho das ciências duras, aquelas que supostamente possuem confiabilidade. (NEUBERN, 2006)
A hipnose surgiu no mesmo contexto do surgimento da ciência positivista e foi já de início considerada como um método menos científico uma vez que se constituía pela influência, que dependia (em seu início) das características do hipnotizador, o que se contrapunha e que se contrapõe ao pilar da neutralidade que sustenta a ciência dura e pressupõe (por vezes prega) aassepsia na relação entre quem aplica a ciência e quem a recebe, na posição de paciente e-ou sujeito experimental. (NEUBERN, 2006)
Raymond E. Fancher (1996) faz um apurado estudo histórico acerca da história da hipnose sobre o qual faço um pequeno resumo, apontando os fatos mais importantes com a tentativa de reconstruir, mesmo que en passant, a trajetória temporal entre os primórdios da hipnose e o seu uso na psicanálise por Freud e na Psicologia, por variados atores. Apenas como nota de esclarecimento, reconhece-se a importância da psicanálise como movimento instituinte da Psicologia Moderna, não legando-a, contudo, papel central em tal instituição.
Para Fancher, a hipnose, no mundo moderno, inicia-se juntamente à figura de Franz Anton Mesmer. No ano de 1775, o príncipe da Bavaria constitui uma comissão para investigar as ações de exorcismo do padre Johann Joseph Grassner (1727 – 1779). Grassner fazia rituais de exorcismo para curar pessoas e, quando suas ações não surtiam efeitos, ele encaminhava o moribundo a um médico. Em seu tempo, o padre gerou polêmicas, tanto dentro quanto fora da Igreja. Franz Anton Mesmer fez parte da referida comissão e tentou convencê-la de que as ações de Grassner tinham validade, explicando-as com base em sua teoria acerca do magnetismo animal. Sua tentativa não salvou o padre da condenação.
Mesmer havia defendido o seu doutorado em 1766, na Universidade de Viena, com 32 anos, sob o título “Da influência dos planetas sobre o corpo humano”. Em sua tese, nomeava de “magnetismo animal” à força existente no relacionar-se da matéria com o cosmos sendo, tal força, sujeita à manipulação humana por meio, dentre outros, de imãs.
Em 1773, Mesmer começou a tratar Francisca Oesterlin a qual sofria convulsões, espasmos de vômitos, inflamações intestinais, dificuldades para beber água, dores de dente e ouvido, alucinações, cegueira temporária, sensações de sufocamento e paralisias, conjunto de sintomas que foi chamado por Mesmer de “febre histérica”. Ele iniciou um tratamento à base do uso de imãs no corpo de Francisca a qual entrava em um estado de crise convulsiva para, depois, aliviar-se de seus sintomas, temporariamente. A repetição do tratamento por diversas vezes parece ter curado a mulher.
Mesmer fez o mesmo com a garota Maria-Theresia Paradis, pianista cega desde os três anos. A verdade sobre esse caso parece não existir, mas pesquisadores indicam que, pelo menos temporariamente, Mesmer conseguiu curar a cegueira da menina e que, certamente, foi o caso que o estimulou a sair de Viena para Paris, pois, em seu desenvolvimento, foi acusado de charlatão.
Na França, Mesmer fez diversos tratamentos. Aprimorou sua técnica, fazendo tratamento coletivos em torno de um tubo onde supostamente havia fluido magnético com capacidade de curar. Mesmer tocava sua “glass harmônica” (instrumento inventado por Benjamin Franklin) numa outra sala, enquanto seus pacientes ficavam de mãos dadas em torno do tubo. Após criar uma mística, ele entrava com seu roupão lilás e tocava no corpo dos pacientes com o dedo. Alguns entravam em estados convulsivos e um deles, normalmente o que apresentava a “maior” crise, era levado a um quarto reservado, o “quarto da crise”, recebendo tratamento especial de Mesmer. Pelo menos é assim como nos conta Fancher (1996).
O relato acima parece mais uma caricatura. Se caricaturizado ou não, de qualquer maneira, o rei da França, em 1784, criou uma comissão para investigar os trabalhos de Mesmer. A comissão foi composta por, dentre outros, Benjamin Franklin (o criador da harmônica que Mesmer tocava com maestria), Joseph Guillotin (que sugeriu, no período da Revolução Francesa, o uso da guilhotina como forma de execução para as penas de morte) e Antoine Lavoisier (que perdeu a cabeça na guilhotina). (Notem como os destinos desses personagens selaram-se de maneira curiosa! – magnetismo?)
Benjamin Franklin
http://www.explicatorium.com/Benjamin-Franklin.php
Os membros da comissão participaram das sessões de Mesmer e concluíram que, de fato, os pacientes sofriam efeitos (de cura inclusive), mas que tais efeitos eram decorrentes do poder de sugestionabilidade criado pelo contexto e por Mesmer, ao invés do suposto magnetismo animal, como apregoado pelo médico vienense. A comissão desacreditou, portanto, Franz Anton, mas seus discípulos continuaram a exercer a “curas pelo magnetismo”.
Um de seus discípulos, Amand Marie Jacques de Chastenet, conseguiu levar um de seus pacientes a um estado de “crise” que, diferente das convulsões precipitadas nas sessões mesmerianas, caracterizava-se por uma paz, um transe em que a pessoa dormia, mas continuava a responder aos comandos do magnetizador. Chastenet chamou o estado de “sonambulismo artificial”.
John Elliotsen (1791-1868), médico no Hospital da Universidade de Londres, tentou trabalhar com o mesmerismo como meio anestésico (não como discípulo, mas resgatando o quase esquecido legado de Mesmer). John não recebeu apoio da Universidade e demitiu-se como maneira de protestar. Em 1843, fundou o jornal Zoist sobre o tema “fisiologia cerebral, mesmerismo e suas aplicações ao bem-estar humano”. Foi chamado de profissional “pária” pelos conselhos médicos da época.
Em 1842, W. S. Ward, médico inglês, afirmou ter feito uma cirurgia de amputação de perna usando o mesmerismo. A Sociedade Real de Medicina posicionou-se incrédula diante da afirmação de Ward.
O escocês James Esdaile foi o primeiro a usar o mesmerismo em larga escala e de maneira experimental, tabulando os dados. Operou mais de 300 pacientes no final da década de 1840. A maior parte dessas cirurgias foi de retirada de tumores no escroto, cirurgia considerada de risco para época, com um índice de mortalidade de 50%. De acordo com os dados de Esdaile, ele conseguiu diminuir o índice para 5% com o uso do mesmerismo. Também foi desacreditado.
Somente após os estudos do escocês James Braid foi que o mesmerismo conseguiu, novamente, um lugar dentro do meio científico. Braid estudou a insensibilidade à dor induzidas pelo mesmerismo e deu créditos à técnica após perceber que a pupila dos pacientes, em estado de transe, continuavam dilatadas, mesmo após forçar a abertura dos olhos do paciente. Braid, em seus estudos, associou os estados de transe à sugestionabilidade do paciente e não a um suposto fluido manipulado pelo magnetizador. Isso permitiu dar mais créditos à técnica uma vez que resolvia o problema da influência do magnetizador, fator importante numa ciência que se construía sobre o pilar da imparcialidade. Além disso, o que antes chamavam de mesmerismo, Braid chamou de neurohipnologia: hypnos, palavra grega que significa “dormir” e neûron, palavra grega que significa nervos. Hoje, a técnica é conhecida por “hipnose”.
De Braid a Freud, a hipnose desenvolveu-se em meio às divergências entre o que foi chamado de a “Escola de Nancy” (referente ao conjunto dos trabalhos e escritos de Auguste Ambroise Lièbeault [1823 – 1904] em torno da hipnose e de seus sucessores, como Hyppolite Bernheim) e a “Escola de Sapetrière”.
Hyppolite de Bernheim, de acordo com os estudos de Neubern (2006), buscou a junção da comunicação humana com os mecanismos cerebrais que fossem capazes de transformar a sugestão em processo de cura, de melhora, de soluções e etc. Dessa forma, colocava como ponto central da terapêutica psicológica a relação estabelecida entre o “cuidador” e seu paciente e o papel ativo do paciente em seu processo de cura. Sobre o projeto de Bernhein, Neubern afirma: “Natureza e espírito estavam novamente sendo conciliados dentro de um projeto científico” (NEUBERN, 2006, p.349).
Por outro lado, na Escola de Salpetrière, destacou-se os trabalhos de Jean Baptiste Charcot que, contrariando a concepção da escola de Nancy, encarava a hipnose como um sintoma da histeria e não como uma característica humana a ser usada no processo terapêutico.
Foi com Charcot que Freud, nos anos de 1885 e 1886, desenvolveu estudos e concepçoes acerca do que no meio acadêmico chamava-se de histeria e sobre o uso do método hipnótico em seu tratamento. Fulgêncio (2002) apresenta um relato sobre a passagem de Freud em Paris. Ressalta-se que Freud recebeu influência tanto de Charcot quanto de autores da Escola de Nancy, como Hippolyte Bernheim (foi professor de Freud) e, assim, pôde, pelo menos de início, usar e desenvolver o método hipnótico, mesmo considerando que sua eficácia estava aquém de uma clínica resolutiva.
Neubern (2006) mostra que a hipnose foi abandonada por Freud e que sobre ela pairou uma espécie de maldição, de silenciamento. Aliás, a história da hipnose, como se vê, é polêmica desde seu início, desde os trabalhos do padre Grassner e da comissão da qual Mesmer participou. O distanciamento da psicanálise com relação à hipnose, deveu-se ao fato de Freud e demais criadores da psicanálise buscarem maior credibilidade uma vez que a hipnose possuía e ainda possui relações com o mesmerismo, descreditada cientificamente. Contudo, Neubern conclui que a hipnose, no desenvolvimento da psicanálise, e portanto da Psicologia (mesmo que diferentes, modificantes uma à outra), não foi apenas abandonada, mas foi também censurada. O que nos leva a questões que vão além da validação ou não do conhecimento, pois abrangem uma Ética do pensar.
Levando em consideração o percurso histórico da hipnose e sua estreita relação com o nascimento e o desenvolvimento da Psicologia chamada Moderna, torna-se importante aprofundar os estudos acerca da história dessa relação, recontá-la nas muitas maneiras possíveis. O questionamento acerca da história é um dos motores do desenvolvimento da Psicologia. Neubern (2006) nos deixa uma questão que considero fundante e, por isso, a deixo aqui como encerramento desse texto: como uma ciência, como a Psicologia pode se desenvolver sem poder voltar às suas origens?
Referências:
FANCHER, Raymond E. Early hipnotists and the Psuchology of social influence. In: Pioneers of Psychology, Third Edition, W.W.Norton & Company, Inc. NY – London. 1996.
FULGÊNCIO, Leopoldo. A compreensão freudiana da histeria como um reformulação especulativa das psicopatologias. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, ano V, n. 4, dez/2002.
NEUBERN, Maurício da Silva. Hipnose e Psicologia Clínica – retomando a história não contada. In:Psicologia: Reflexão e Crítica 19(3) – p.346-354, 2006.