Merida – Uma Princesa Diferente?

Uma princesa não rabisca, não gargalha, não enche a boca, acorda cedo,
tem compaixão, é paciente, cautelosa, limpa [….] e acima de tudo,
uma princesa busca ser perfeita!”

Rainha Elinor – Brave, 2012

Os contos de fadas têm marcado o imaginário social sobre os papéis de homens e mulheres na sociedade. Trazemos coladas a nossas existências nítidas representações destas histórias de reis, rainhas, aventuras e disputas entre o bem e o mal, assim como o ideal do ‘Felizes para Sempre’. Estas narrativas (que nem sempre trazem fadas em seus enredos) eram originalmente destinadas ao entretenimento dos adultos e, portanto, nas versões originais apresentavam elementos de violência e sexualidade explícitos. Gradualmente estes contos foram se transformando em histórias infantis, sendo cortados os aspectos mais agressivos e sublinhados os ensinamentos morais (MEREGE, 2010).

Com o advento Disney os contos ganham dimensões globalizadas e ainda mais suavizadas com relação a violência expressa nos originais. Ao mesmo tempo, há um reforço no estereótipo de bruxas, fadas, reis, rainhas, madrastas, príncipes e princesas. Steinberg (1997) aborda os modos de construção de ideologia presentes nas versões Disney dos contos de fadas.

Versões estas que hoje estão gravadas em nossa subjetividade, talhadas na lógica da cultura ocidental capitalista, e que consideramos como clássicas. Alguém imagina uma Branca de Neve diferente daquela da animação lançada em 1937? Ou uma Bela Adormecida distinta da linda figura esguia de longos cabelos loiros e olhos claros? Uma a uma as princesas dos contos de fadas foram sendo capturadas neste movimento docilizante. E com elas os arquétipos do feminino.

Quem nunca sonhou em ser princesa? Ser salva dos perigos pelo príncipe (de preferência encantado) e viver feliz para sempre? Em nossa cultura, atravessada por discursos psicologizantes, encontramos inclusive, um best-seller que fala deste modo produtor de subjetividade: ‘Complexo de Cinderela’. Neste livro, lançado em 1981, a autora Colette Dowling discorre sobre a necessidade feminina da busca do príncipe, aquele homem forte que vai tomar conta de nós, mulheres frágeis, e nos aliviar do fardo da responsabilização por nossas vidas e escolhas. O livro foi um sucesso internacional, apontando o eco que esta teoria encontra em nossa civilização.

Incrível pensar que o desejo é este mesmo, ser princesa e não ser rainha. Lembro da minha infância, de brincar com uma prima e todas as vezes entrarmos em conflito quando era necessário definir os papéis de princesa e rainha. Será que já se apresenta aqui o ideal da juventude? A rainha é mais poderosa, mas ainda assim queremos ser princesas. Talvez porque à Rainha estejam associadas as exigências do poder, as responsabilidades e deveres deste lugar de soberana.

Com estes aspectos presentes, a presente escrita pretende discutir a personagem Merida, da animação Brave1, traduzido para o português como Valente. Uma princesa construída no/para o nosso tempo, mas ainda com muito do que nosso imaginário deposita nesta figura.

Na fala da Rainha Elinor, na abertura do texto, a descrição, ou melhor, a prescrição do que é uma princesa. Me remete à música ‘Ciranda da Bailarina’, de Chico Buarque:

Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem
E não tem coceira
Verruga nem frieira
Nem falta de maneira
Ela não tem
(…)”

É a imagem de uma mulher irreal, de um ser irreal. E contudo, estas alegorias continuam atravessando o imaginário, na busca da perfeição da princesa-bailarina asséptica.

Mas quem disse que as princesas são ou devem ser criaturas doces, meigas, lindas e prendadas? Seria possível pensar uma princesa diferente?

A imagem da princesa donzela, que vive sua vida a espera do príncipe encantado não se ajusta tão bem a contemporaneidade. Vivemos um tempo que exige da mulher um papel complexo, ao mesmo tempo de docilidade e pró-atividade. Neste sentido, o movimento de composição de princesas menos débeis e histórias com mulheres protagonistas fortes constitui-se como necessidade.

A personagem principal deste filme é uma linda princesa (como são todas). Mas esta é, pelo menos em parte, uma princesa diferente. Ela é questionadora, não gosta de pentear os cabelos, de roupas que impeçam os movimentos do corpo e muito menos está sonhando com o príncipe encantado. Ela gosta de arco e flecha, de cavalgar, de escalar, de comer e de ser livre.

Merida tem 16 anos e incríveis cabelos ruivos de cachos rebeldes. O cenário é a Escócia, em um tempo não determinado. Um tempo de reis e rainhas, de batalhas épicas e de magia. Seu pai é o alegre e expansivo Rei Fergus. Incentivador do espírito aventureiro da filha, a presenteia no aniversário de 5 anos, com um conjunto de arco e flecha.

Sua mãe, Rainha Elinor, é a disciplina em pessoa, sendo a verdadeira responsável pelo governo do Reino. A Mãe-Rainha, que uma vez também foi princesa, tenta por todos os meios, moldar Merida para que esta tenha o comportamento esperado e correto para uma princesa.

O destino de Merida está pré-determinado. Ela deve se casar com o primogênito de um dos clãs do reino. Essa é a tradição, e como tal, deve ser seguida imperativamente, sob pena de haver uma guerra entre os diferentes grupos, o que desagregaria o território.

Merida tem seu futuro estabelecido pelo lugar que ocupa: “Eu sou a princesa, sou o exemplo. Tenho deveres, expectativas, reponsabilidades para o dia que me tornarei como minha mãe.” Nesta fala está expressa a demanda que pesa sobre a personagem, como mulher e princesa, mas também como futura governante.

Interessante ver como o lugar da mulher é representado nesta animação. Temos uma princesa valente e uma rainha governante.

O rei, o masculino, é mostrado como força física, e só. Um tanto superficial, trazendo, ao mesmo tempo, toda a questão da aventura e da diversão. Parece haver uma identificação da princesa com este mundo de ousadia e irresponsabilidade, mostrado no filme como um espaço masculino.

Diferente de outros enredos como este, de conto de fadas, nossa figura central apresenta um compromisso com seu desejo. Não anseia por um outro que irá lhe completar, mas por ser inteira e autentica. Também difere de outras tramas em que a princesa deve se sacrificar em nome de uma causa maior, como Pocahontas.

A princesa não quer casar, aliás não quer nem mesmo ter este título de nobreza, que lhe impõe restrições e responsabilidades. A recusa em aceitar o destino de um casamento arranjado, conveniente e/ou adequado, não é uma novidade nas animações ‘estilo princesas’. Encontram-se frente a esta circunstância, por exemplo: Jasmine, Ariel, Bela e Fiona. Contudo, diferente de outras, esta princesa não termina casada ou apaixonada. O questionamento e discordância de Merida não é com o casamento arranjado, mas com o próprio casamento, associado a ideia de falta de liberdade.

Uma das questões especiais do filme, do ponto de vista da virada na representação do feminino, é quando Merida se candidata para disputar por ela mesma, pelo direito de não se casar (ou de se manter fiel a seu desejo), no torneio em que seria decidido seu futuro marido. E ela vence.

Deste fato resulta a ruptura maior entre Mãe e filha. Rompimento simbolicamente representado por um corte em uma tapeçaria que retrata a família, dividindo as figuras materna e filial.

A Mãe-Rainha acusa Merida de ter embaraçado o reino. Ao que Merida retruca que apenas seguiu as regras. E está certa. Encontrou a brecha na instituição tradição. Como em um movimento de arte marcial utilizou a energia do próprio adversário para reverte a seu favor. Escolhe como esporte para o torneio, aquilo no que ela é melhor, o arco e flecha. E como primogênita que é, tem direito à participar da disputa.

Acompanhamos ao longo do desenvolvimento do enredo uma disputa entre Mãe-Rainha e Filha-Princesa. Aqui temos outra diferenciação de Valente. A presença de duas mulheres fortes como protagonistas, que mesmo em conflito não deixam de se querer bem. São mulheres com concepções diferentes sobre a vida e com dificuldades de comunicação.

Bonita a passagem da história em que mãe e filha, em cenas separadas expressam o desejo de que a outra apenas lhe escutasse. Muito significativo, mostrando a dificuldade de comunicação entre mãe e filha, típica da adolescência.

A disputa leva Merida a querer que sua mãe fosse diferente, lhe entendesse e respeita-se sua maneira de ser. Porém, como diz o ditado popular: “Cuidado com o que você deseja, você pode acabar conseguindo”.

Levada pelos fogos fátuos, as ‘luzes mágicas’, até uma bruxa, Merida pede um feitiço que mude sua Mãe e, assim, mude também o seu destino. Estas ‘luzes mágicas’ aparecem na vida de Merida em diferentes momentos, guiando para caminhos e lugares que modificam sua existência. Como se o desejo de potência, estivesse expresso nesta luz, em um fluxo-vida.

Mas o desejo de Merida parece levar a um ‘castigo’, embora a bruxa não seja má, apenas ‘atrapalhada’. A Mãe realmente muda, não de opinião, mas de espécie. Se transforma em uma ursa. Aqui tem início a jornada de mãe e filha rumo a ultrapassagem de suas visões de mundo.

Com a Mãe-Rainha-Ursa tendo que se refugiar na floresta, as coisas se alteram. Quem detém o conhecimento para a sobrevivência é Merida. É a Menina-Princesa-Aventureira quem cuida e ensina a mãe o que comer e como se comportar. As duas estabelecem um vínculo de cumplicidade. Funcionam melhor juntas, são complementares na busca de uma solução para a situação tanto da Mãe-Ursa, como da Princesa-Não Casadoura.

O recurso ao feitiço está em consertar o vínculo dilacerado. Está é a receita da bruxa. Mas o que isso significa? A tapeçaria deve ter seu corte costurado e assim ser unida novamente. Linda metáfora, aquilo que foi rompido não volta a ser igual jamais. Traz em si as marcas do cindido e da costura. Mas é mais do que isso, mais do que o conserto objetivo da coisa. O que deve ser alinhavado é o vínculo afetivo. Uma costura das diferenças geracionais, uma costura da união do diferente. Algo que pode ser integrado em suas singularidades sem que se torne uno. A tapeçaria, a costura da vida, o novo e o antigo, as tradições e as revoluções.

Neste processo Merida assume um lugar de protagonista, até porque lhe é permitido pela ausência por parte da mãe-ursa, deste espaço de poder. Mostra-se uma ótima mediadora do conflito entre os clãs e abre espaço para a mudança nas tradições. Permitindo que a força vital da inovação escora por esta brecha e transversalize o destino.

Outro contraste apresentado por Brave é a ausência de um vilão. Não temos uma bruxa malvada, uma madrasta invejosa ou um dragão furioso. Temos um urso, que de fato é um antepassado enfeitiçado. Mas este personagem, assim como a lenda desta transformação são apenas um pano de fundo e não o argumento central. A trama em evidencia é de fato a relação Mãe e filha e a construção do porvir.

O destino foi deslocado, tomou outro rumo, não como se imaginava, mas pelo desenrolar da vida. Mãe e filha mudaram, aprenderam a reconhecer na outra uma parceira, com defeitos e qualidades. Merida amadureceu e Elinor entendeu que não precisa estar no controle de tudo. Não deixaram de ser princesa e rainha, mas transmutaram suas visões de mundo.

Uma princesa diferente? Sim. Ainda temos um caminho a percorrer, mas há esperança. Merida – ruiva despenteada, menina arqueira, sem príncipe encantado, sem casamento ao final. Princesa aventureira, com capacidade política, mulher real, que constrói seu caminho no aprendizado, mantendo-se fiel a seu desejo.

Notas:

1 Filme lançado em 2012, sendo o primeiro conto de fadas resultante da parceria  entre a Walt Disney Pictures e a Pixar Animation Studios.

2 Sobre este tema ver Steinberg, 1997.

Referências:

BRAVE. Direção Brenda Chapmane Mark Andrews. Produção Pixar Animation Studios. Estados Unidos: 2012. Distribuição Walt Disney Pictures. BluRay, (93 min.), colorido.

BUARQUE, Chico e LOBO, Edú. Ciranda da Bailarina. In: Buarque, Chico e Lobo, Edú.O Grande Circo Místico(CD). Brasil:  Universal, 2005.

DOWLING, Collete. Complexo de Cinderela. São Paulo: Melhoramentos, 1981.

MEREGE, Ana Lúcia. Os contos de fadas: origens história e permanência no mundo moderno. São Paulo: Claridade, 2010.

STEINBERG, Shirley R.. Kindercultura: a construção da infância pelas grandes corporações. In: SILVA, Luiz Heron da; AZEVEDO, José Clóvis de e SANTOS, Edmilson Santos dos (Orgs.).Identidade Social e a Construção do Conhecimento. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Educação – Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1997.

Psicóloga, Especialista, Mestre e Doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Principais áreas de atuação e pesquisa: Psicologia do Trabalho, Psicologia Institucional, Psicologia Social e Psicologia como Ciência e Profissão.