Mika Etchebéhère, personagem esquecida: da América Latina à Europa em busca da Igualdade de Gênero

Giselle Carolina Thron: giselle.thron@ceulp.edu.br 

Ao pensarmos na conturbada história dos conflitos mundiais que ocorreram no século XX, temos nomes formados em nossas memórias, sobretudo nomes masculinos, que sempre estão presentes na literatura sobre o assunto. Pensando também na hierarquia destes conflitos, sempre nos lembramos de determinados eventos sendo alguns deixados à revelia, entendemos que é de suma importância conhecer personagens novos, sobretudo de conflitos que não estão no topo do interesse comum mas que, no contexto destes conflitos, são de grande relevância para o entendimento do conturbado período a que estamos nos referindo. 

Durante os agitados anos da década de 1930 as mulheres espanholas viveram várias fases: queda da monarquia, instauração da república, revolução, repressão stalinista, ditadura franquista. Cada uma destas fases provocou muitas mudanças no seu modo de vida, novas experiências, algumas boas, outras nem tanto. Mas, destas, a Revolução de 1936 foi, sem dúvida, o ápice das conquistas e de experiências transformadoras. Na madrugada de 18 para 19 de julho de 1936, um golpe militar marcaria para sempre a história da Espanha e do mundo. Apesar de considerado o marco inicial da Guerra Civil Espanhola, na realidade marca o ápice de um processo revolucionário anterior, irrompida pelas massas operárias e camponesas. 

Deflagrada a revolução, as mulheres foram aceitas para servir nas milícias revolucionárias combatendo de igual para igual com seus companheiros. Nos primeiros combates não era uma imagem tão impressionante, mas elas estavam lá para defender os direitos da classe operária como um todo e o seu especificamente. Nas milícias revolucionárias não havia hierarquia militar e imperava a ausência dos privilégios do antigo Exército fazia da milícia uma de muitas concretizações do ideal revolucionário perseguido pela classe operária. E, entre tantas desigualdades, a milícia punha fim àquela de natureza sexual.

Poderíamos falar sobre centenas de mulheres que participaram destes combates, e foram muitas, mas neste momento, resgataremos a história da miliciana Mika Etchebéhère que participou desde os primeiros combates na defesa de Madri, quando inicialmente os franquistas tentaram tomar a capital castelhana e teve início a batalha – seguida do cerco em Madri, onde participaram na sua defesa as milícias dos vários partidos e organizações sindicais lutando juntas na defesa da capital.

Micaela Feldman era filha de judeus russos que fugiram para a Argentina antes de seu nascimento em 14 de março de 1912. Ainda na infância, Micaela se encantou com a revolução social. Seus pais possuíam um restaurante na colônia judaica em que habitavam na Província de Santa Fé. Lá ouvia os relatos de fuga de revolucionários das prisões da Sibéria. Ainda na adolescência juntou-se a algumas colegas para formar a agrupação de mulheres “Luísa Michel” de inspiração anarquista.

Em 1920, com 18 anos, já em Buenos Aires cursando Odontologia, conheceu Hipólito Etchebéhère. A partir daquele momento os dois formariam uma parceria que duraria até a morte de Hipólito no início da Revolução Espanhola. Micaela foi apresentada a Hipólito Etchebéhère e a mais dois amigos que queriam sua adesão ao grupo Insurrexit. Inicialmente ela ficou reticente por se tratar de jovens provenientes da burguesia, mas Hipólito a convenceu.

As lutas operárias, a Revolução Russa e o antissemitismo mexeram com os sentimentos de Mika, tanto que, em 1924, filiou-se ao Partido Comunista da Argentina trabalhando para a sua implantação definitiva. Ela trabalhava em prol da seção feminina do partido, promovendo encontros e reuniões, panfletagem e discursos nas ruas e em portas de fábricas. Por não concordar com as novas diretrizes do partido – essa é a época da burocratização – se distancia do Partido Comunista e, devido às discordâncias que sempre expressaram publicamente, é expulsa e se aproxima do trotskismo.

Em virtude da fraca saúde de Hipólito, causada pela tuberculose, eles resolvem ir para a Patagônia onde trabalhavam no consultório odontológico que Mika montou com o intuito de juntar dinheiro para a viagem para a Europa. Naquele momento não tinham esperanças no movimento revolucionário argentino ou mesmo latino-americano, o que sentiam muito.

O país escolhido inicialmente fora a Alemanha, no momento da Revolução Alemã. Acreditavam que em um país com uma classe operária tão forte e organizada como era o caso alemão, a revolução social teria sucesso. Passaram antes por Madri, desembarcaram em junho de 1931, dois meses após a queda da monarquia e a instauração da República. O clima revolucionário em que vivia a Espanha a deixou com grandes expectativas: “exigiam a separação da Igreja e o Estado… aprendemos a querer o povo espanhol”. Nutria o desejo de voltar à Espanha para participar das grandes transformações que certamente aconteceriam. Da Espanha partiu para Paris para preparava-se intelectualmente para a revolução, trabalhando em jornais da esquerda comunista, acreditando que assim poderia se aproximar mais da classe operária alemã. 

Em outubro de 1932 chegou à Alemanha, acreditando na vitória da revolução, procurou se aproximar do Partido Comunista, mas com a derrota da classe operária, a ascensão de Hitler e a passividade do Komintern decepcionaram-se ainda mais com o comunismo.

Em maio de 1936 Hipólito vai para um sanatório em Madri devido à tuberculose. Ela continua em Paris trabalhando para prover sustento do casal. Em 12 de julho, Mika Etchebéhère chegou a Madri, apenas seis dias após o golpe liderado pelo general Franco. A resistência da classe operária reacende a esperança de uma revolução vitoriosa. A derrota da Alemanha tão presente em sua memória não poderia se repetir. 

Mika e Hipólito Etchebéhère logo se incorporam ao POUM – Partido Operário de Unificação Marxista. Não era o seu partido, mas era o que mais se assemelhava ao grupo de oposição comunista. Hipólito foi requisitado para ser capitão da Coluna Motorizada do POUM. Inicialmente Mika ficou na retaguarda, cuidando dos feridos, junto a outras mulheres por ordens de Hipólito. Mesmo para ele, homem culto e consciente das suas capacidades, não lhe agradava ver as mulheres de sua milícia na frente de batalha, principalmente sua companheira. Assim, por sua ordem, ela ficou na organização da retaguarda, responsável pelos cuidados médicos, limitada à prática do assistencialismo.

Fonte: commons.wikimedia.org

Com o apoio dos milicianos e milicianas, Mika decidiu assumir a milícia após a morte de Hipólito em 16 de agosto de 1936 (ferido no coração na batalha de Atienza), mas a situação era desesperadora. Ao contrário do marido, descrito por ela como um eterno otimista, Mika mostrava-se mais realista perante a situação. No entanto, acreditava que ali tinham a responsabilidade de frear o avanço dos fascistas e levar adiante a revolução social. A falta de armamento adequado, a responsabilidade pela integridade física e de manter acesas as esperanças daqueles milicianos tão jovens, alguns meninos e meninas de apenas 14 anos, era uma constante preocupação para ela.

Além das vitórias conseguidas pela “Coluna Motorizada do POUM” sob o comando de Mika, as notícias corriam também sobre o modo como sua capitã se comportava diante das situações de perigo e sobre o modo como ela dirigia sua coluna promovendo a igualdade entre homens e mulheres, seguindo as diretrizes do POUM – e suas próprias. Este comportamento levou muitas milicianas que estavam em outras colunas, sabendo da igualdade de direitos que promovia a capitã Etchebéhère, a se ofereceram como voluntárias na milícia de Mika, por saber que lá as mulheres teriam o direito de lutar.

Após o combate de Siguenza e o cerco à catedral, Mika passou um tempo em Madri e depois em Paris. Devido ao casamento com Hipólito, que era filho de franceses, ela obtém a cidadania francesa, o que futuramente a salvaria das prisões stalinistas e fascistas. Enquanto estava em Paris, continuou trabalhando pela revolução organizando reuniões para a apresentação de filmes, sobretudo dos combates de Siguenza. Mika fez palestras explicativas aos cidadãos franceses buscando apoio da classe operária para a união em defesa da revolução. Mas o que chega da Espanha desanima, as notícias recebidas da imprensa a deixam preocupada: “As notícias sobre a guerra na Espanha são doídas”. As milícias continuam fugindo diante do avanço franquista.

Ao voltar de Paris, no início de novembro, desta vez para Barcelona, Mika confirma as notícias anteriormente recebidas: a situação está cada vez mais difícil para o lado republicano, “não há esperança para Madri,” a capital já havia sido transferida para Valência. Neste período, a milícia do POUM foi dividida em duas companhias e o comando de uma delas composta, na maioria, por sobreviventes de madrilenos – que, por sua vez, sobreviveram ao cerco da catedral foi entregue à Capitã Etchebéhère.

Mesmo com a militarização das milícias e posterior volta das mulheres para a retaguarda, Mika Etchebéhère continua no comando, sendo a única mulher a ter o comando de tropas do Exército republicano. Mesmo que não soubesse sobre táticas de guerra, nem tampouco ler mapas militares, o fato não assustava os homens e mulheres que ela comandou, estes sempre demonstraram confiança e orgulho em combater sob suas ordens. Na verdade, nem mandar sabia, afirmou certa vez que não necessitava mandar, já que os homens tinham total confiança em seu poder de decisão e não contestavam suas ordens. Mesmo com todos os problemas enfrentados, a fama da Capitã Etchebéhère chegou ao Alto Comando da República.

O respeito que os homens sentiam por ela crescia ainda mais. Os milicianos sob seu comando também se preocupavam com ela, em muitos momentos achavam incrível que uma mulher pudesse resistir às durezas das trincheiras. A maioria dos seus comandados eram espanhóis e para eles era estranho ver mulheres em situações como esta, conhecendo todas as situações difíceis e a dificuldade da vida que sempre levavam as mulheres. Além desse, outro ponto chamava a atenção deles: Mika era estrangeira. Tanto ela como seu marido, além de tantos outros homens e mulheres estrangeiros que lutaram e morreram em várias frentes de batalha, despertaram a admiração dos operários e camponeses espanhóis. Outro ponto de admiração era que Mika não se preocupava apenas com a saúde física da milícia, preocupava-se também com o conhecimento. Organizou uma escola e uma biblioteca com doações de livros obtidos em Madri e, quando a situação se mostrava calma, dava aulas para os integrantes da milícia e os incentivava a ler.

Mesmo com todos os esforços da coluna da Capitã Etchebéhère, assim como de tantas outras que combateram pela revolução social e todos os benefícios que traria para a classe operária e camponesa, a contrarrevolução venceu. Após isso a derrota para o fascismo, cujo resultado foram prisões lotadas, centenas de torturados, milhares de mortos e feridos, centenas de exilados. Durante a perseguição stalinista, Mika foi presa, mas por poucos dias. Seu passaporte francês a salvou de uma nova prisão, quando os franquistas tomaram Madri, depois disso refugiou-se em Paris e de lá voltou para a Argentina. Em 1976, ao escrever sua autobiografia recordou-se de todos aqueles meninos e meninas que, em muitas situações, depositaram suas vidas nas mãos dela. Continuou a defender sempre seus ideais revolucionários até sua morte em 1992. Mika Etchebéhère nunca voltou a se casar e, até seu falecimento, conservou o capote e a arma de Hipólito como um troféu, a lembrança mais viva de suas paixões, Hipólito e a revolução 

FONTES E BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Ângela Mendes de. Revolução e Guerra Civil na Espanha. 2 ed. São Paulo: Brasiliense. 1987. (Tudo é História)

ETCHEBÉHÈRE, Mika. Mi Gerra de Espana. Barcelona: Alikornio Ediciones. 1984. 

FERNANDEZ, Adriana Martinez. Rojas: La Construcción de la Mujer Republicana en la Memoria de España. Revista Eletrônica ALPHA, n. 22. jul. 2006. Disponível em: https://revistas.ucm.es/index.php/CHCO/article/view/CHCO0707220035A/6747  Acesso em: 24/03/2023.

MARTÍNEZ, Rosa Maria Capel. De Protagonistas a Represaliadas: la Experiencia de las Mujeres Republicanas. Cuadernos de Historia Contemporánea, 2007. Disponível em: https://www.revistaalpha.com/index.php/alpha/article/view/538/537. Acesso em: 24/03/2023