Soren Kierkegaard é antes de tudo, escritor e um dos fundadores da filosofia existencialista. De fato, não há um consenso quanto ao ideal deste grande pensador ser considerado um filósofo, afinal há muitas opiniões contrárias, incluindo a do próprio Kierkegaard. É autor de grandes obras como O conceito de Angústia, A Repetição, Temor e Tremor e O Desespero Humano.
Nascido em uma época onde os ideais difundidos e adotados eram os de Hegel, ele passa a discordar dessas ideias e a promover ataques contra o filósofo e a religião vigente. Suas obras existenciais não eram abordadas sob o ponto de vista universal, mas eram escritos acerca de suas experiências como ser existente, são frutos de suas próprias angústias. E, é válido ressaltar que o conteúdo contido nesses escritos deu a base para a fundação da filosofia existencialista, influenciando também algumas escolas da Psicologia.
O presente artigo apresenta os três estágios da existência humana segundo Kierkegaard, e como a liberdade pode gerar angústia ao ser humano, e como a condição emocional da existência, exposta por Kierkegaard, serve como apoio às ciências psicológicas de base existencialista.
O Existencialismo de Kierkegaard
O Existencialismo pode ser considerado como uma corrente teórica que se ancora no conceito de Autopoiese, onde o ser humano tem a capacidade de produzir a si próprio. Isto é, “o Existencialismo é, então, uma reação contra as construções sistemáticas que anulavam o homem no meio das abstrações, despersonalizando-o” (SILVA, 2011).
No que diz respeito à existência humana, Kierkegaard subdivide-a em três categorias, sendo elas a estética, ética e religiosa.
A estética esta relacionada a uma busca desenfreada pelo prazer, sendo este um prazer momentâneo, que acaba se dissipando, deixando assim, o ser humano vazio de si. Atualmente é possível observar que tal pensamento tem prevalecido, já estamos em uma sociedade capitalista, que visa o lucro, onde o ser humano se torna um consumidor em busca de uma performance que se adapte a esse sistema.
Já no estágio ético o homem subordina-se às leis, sua existência é marcada pelos deveres que assumem, regras e uma legislação que os regem. E, a maioria das pessoas que compõe esse estágio é identificada como tradicional. A partir de tal, salientamos que o estágio estético é o inverso do ético, enquanto o primeiro usufrui do prazer, o segundo é submetido ao dever.
O padrão social ético choca com as questões sociais emergentes atuais. Como por exemplo, temos a disforia de gênero, no qual o indivíduo acredita que seu gênero é oposto ao com que nasceu.
Por fim, temos o estágio religioso, no qual deixa-se a ética buscando aproximação com a religião, o homem não é mais sujeito das leis universais, mas sim sujeita-se a sua crença. Um clássico exemplo é o de Abraão e Isaac, apresentado na obra Coleção Os Pensadores, onde Kierkegaard discorre que a atitude de Abraão em se dispor a sacrificar seu filho, em nome de Deus, infringe as leis, de forma que passa do estado ético para o religioso, onde sua crença permite tal ato.
Angústia
De acordo com o Dicionário Michaells (2009), a angústia pode ser definida como um estado de exagerada aflição, ansiedade e sofrimento. Oposto a esse conceito, Kierkegaard (1968 apud Silva, 2011) diz que tais sensações são apenas categorias que o ser humano vivencia, e a angústia deve ser entendida como sendo uma vertigem da liberdade, na qual existe uma ambiguidade gerada no fato do indivíduo sentir atração e repulsa por esta liberdade. A mesma não é momentânea, não possui um objeto específico, e é tida como fundamental para que o homem adquira sua autonomia.
É perceptível a influência da religião sobre Kierkegaard, pois este apresenta a angústia como algo sempre presente na existência humana, sendo assim fruto do pecado original de Adão e Eva. Doravante a situação de desobediência a Deus (um ser transcendente), iniciou-se o livre arbítrio, a angústia surge pela liberdade absoluta.
Enquanto o homem ainda está em estado de inocência (ignorância), a angústia permanece latente, pois ele realiza atos espontaneamente e sem refletir sobre suas ações. Mas, a partir do momento em que se depara numa situação que precisa exercer seu poder de escolha, a angústia vem à tona. Este tem a possibilidade na escolha, entre o poder e o não poder, de modo que é auto responsável pelas consequências das suas escolhas.
Ainda nesse contexto, existem dois tipos de angústia: a objetiva e a subjetiva. A primeira, angústia objetiva, é entendida pela forma de como o pecado entrou no mundo. Enquanto que, a segunda, implica na inocência do ser, sendo semelhante ao caso de Adão.
O desespero é instaurado como o conflito entre o ser finito e a vontade da infinitude, por isso apresenta-se concomitantemente à angústia.
Nessa perspectiva, as pessoas sabem que a única certeza inevitável é a morte, porém fazem de tudo para evitar o envelhecimento (que é o nível de desenvolvimento mais próximo esta). De acordo com uma reportagem do National Geographic, “Tabu: Cirurgias Plásticas”, observa-se que o corpo, nesse contexto, é a única representação do sujeito e é a partir dele que se abrem as portas para a vida social. Em virtude disso, o número de cirurgias plásticas tem tomado uma proporção exorbitante. Inúmeros são os casos de homens e mulheres que se frustram e se tornam obsessivos na procura da perfeição do corpo, acreditando ser um tabu a existência de um corpo fora do padrão, ou seja, um corpo considerado esteticamente ideal e funcional. Tal procedimento é facilitado pelo uso de novas tecnologias aliadas às práticas médicas e estéticas, por isso, nessa conjuntura imagética, só é “feio” quem não se dispõe a esses tipos de mudanças.
É válido ressaltar que “A decepção mais comum é não podermos ser nós próprios, mas a forma mais profunda de decepção é escolhermos ser outro antes de nós próprios.” (KIERKEGAARD, 1968 apud RUANO, 2015). Diante de tal afirmação, depreendemos que o homem possui certo medo de enfrentar suas próprias angústias, e como consequência, prefere deixar sua individualidade de lado, se integrando às massas sociais, adaptando suas características a elas, como meio de se sentir aceito pela própria sociedade somática e imagética. Dessa forma, então, o ser deixa o seu poder de criticidade para se submeter a esse estilo de vida padronizado.
Ao modo que, quando se refere a uma sociedade imagética, temos como principal característica a supervalorização da imagem, onde o ser humano tem se afastado de si, da sua subjetividade, e tem encaminhando-se para uma busca da perfeição do seu corpo, gerando ansiedade, frustração, promovendo adoecimento psíquico, a chamada somatização.
Com isso, podemos ver que a sociedade tem se tornado a coletividade da medicalização. Nesse aspecto, pode-se citar a visão de Roudinesco (2000), “[…], quanto mais se promete o ‘fim’ do sofrimento psíquico através da ingestão de pílulas, que nunca fazem mais do que suspender sintomas ou transformar uma personalidade, mais o sujeito, decepcionado, volta-se em seguida para tratamentos corporais.”
Nesse ínterim, a angústia compreendida no homem atual tem sua origem na própria idéia conceituada por Kierkegaard, nos remetendo ao fato de que tal autor se apresentou como avançado para sua época, demonstrando problemas que podem ser vistos hoje, de forma que o ser humano não deve superar a angústia, mas sim aprender a viver com ela.
Kierkegaard e a Psicologia
Muitos estudiosos que vieram após Kierkegaard não o consideravam um filósofo, assim como o próprio Kierkegaard, através de seus inúmeros pseudônimos, não se considerava um. Janzen e Holanda (2012) se utilizam das próprias palavras de Johannes de Silentio, um dos pseudônimos de Kierkegaard, para enfatizar a afirmação acima, afinal como poderia Kierkegaard que não fez parte ou entendeu a qualquer sistema de filosofia ser um filósofo?
Kierkegaard não escreveu, em seus muitos livros, acerca do mundo, mas sim sobre si mesmo, sobre suas verdades, suas experiências, sejam elas de angústia ou desespero. É essa existência de Kierkegaard, que dá relevância ao emocional, segundo Janzen e Holanda (2012), que faz com que ele seja associado a escolas de Psicologia que possuem bases Existencialistas.
Protasio (2014) mostra como em alguns dos escritos de Kierkegaard, ele demonstrava uma ideia de Psicologia. E é esse ideal psicológico encontrado nas obras de Kierkegaard que influenciou de fato, a Psicologia.
Portanto, embora haja diversas opiniões contrárias sobre Kierkegaard ser ou não um filósofo, e mesmo ele não se considerando como tal, suas obras iniciaram a criação do existencialismo para a filosofia. Para definir o que é a existência humana, Kierkegaard subdividiu este pensamento em três categorias que se é muito observado nos dias atuais, assim como é predominante. O mundo capitalista preocupado com a vaidade e a beleza externa, uma existência subordinada a leis e regras e as crenças religiosas vistas como superiores as leis universais. Toda essa trajetória da vida existencial humana gera por si uma angústia, que para este pensador é uma perda do equilíbrio da liberdade. Kierkegaard, adiante do seu tempo, percebeu problemas que podemos ver hoje.
REFERÊNCIAS:
BURNHAM, Douglas; BUCKINGHAM, Will. O livro da filosofia. São Paulo: Globo Editora, 2011.
CHAUÍ, Marilena. Coleção Os Pensadores: Kierkegaard. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
FEIJOO, Ana Maria Lopez Calvo de et al . Kierkegaard, a Escola da Angústia e a Psicoterapia. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 35, n. 2, p. 572-583, Abr./Jun. 2015.
JANZEN, Marcos Ricardo; HOLANDA, Adriano. Elementos para uma psicologia no pensamento de Soren Kierkegaard. Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 572-596, 2012.
MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. ______: Editora Melhoramentos, 2009.
PROTASIO, Myriam Moreira. A psicologia indicada por Kierkegaard em algumas de suas obras. Rev. abordagem gestalt, Goiânia, v. 20, n. 2, p. 213-220, Jul./Dez. 2014.
ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a Psicanálise? Rio de Janeiro: Zahas, 2000.
RUANO, Eduardo. Soren Kierkegaard e o existencialismo. Disponível em: <http://www.laparola.com.br/soren-kierkegaard-e-o-existencialismo>. Acesso em: 24 mar. 2016.
SALVIATI, Nívea Regina Simono. Angústia Existencial. Disponível em: <http://www.psicoexistencial.com.br/angustia-existencial/>. Acesso em: 24 mar. 2016.
SILVA, Andressa S. Existencialismo. Disponível em: <http://artigos.netsaber.com.br/resumo_artigo_54071/artigo_sobre_existencialismo>. Acesso em: 24 mar. 2016.
Tabu Brasil: Cirurgias Plásticas. Direção: Eduardo Rajabally. Coordenação de Produção: Luana Binta. National Geographic, 2013. 47’35. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7N9wVtONEMY>. Acesso em: 24 mar. 2016.