Em uma dessas viagens que se faz por acaso e sem muita vontade, acompanhei meu pai até um povoado onde ele iria tratar de negócios. Enquanto ele resolvia seus interesses, fiquei na varanda da casa de seu sócio, sentado em uma daquelas cadeiras de madeira que deixam a coluna terrivelmente ereta. E tão logo sentei, saquei do bolso minha arma contra o tédio: palavras-cruzadas. É bom entretenimento que exercita a mente. E falando em mente, estava com a minha bem distante daquele local inerte, quando algo me arrastou para o não-mundo-das-palavras-cruzadas, o tal do mundo real: um homem com cerca de 35 anos, pele maltratada pelo sol, camisa do flamengo, “olhos de vidro” e algo mais que não estava ao alcance da minha percepção imediata.
Quando digo que tinha “olhos de vidro”, é a melhor qualidade que encontrei para adjetivar aquele olhar fixo que formava uma perpendicular à minha estrutura corpórea. Ficou parado, olhando por uns 5 minutos, mas meu desconforto me fez pensar que havia se passado 5 anos. Então, ele resolveu se mexer e foi quando pensei que voltaria de onde surgiu. Ingênuo engano. Como se tivesse sido convidado, sentou-se no pequeno muro de meio metro que fazia a fronteira da rua com a casa, que para mim tinha a conotação de uma fortaleza que ruiu. Mas antes de sentar-se, ele tratou de limpar cuidadosamente uma sujeira que eu não consegui enxergar. O olhar do moço se transformou; parecia um quadro bizantino com aquele típico olho que fita o infinito sem muita esperança.
Como se tivesse ouvido um chamado, saiu atônito para algum lugar que meus olhos não conseguiram acompanhar. Reconheço que senti alívio. Por quê? Ele não havia feito nada que atingisse minha integridade física ou moral. Por que reagi internamente daquela forma? Pouco me questionei no momento e logo voltei para o mundo perfeito das palavras-cruzadas.
Decorrido pouco tempo, meu pai saiu à porta, continuando sua extensa conversa como quem quisesse colocar ponto final na prosa. Mas da outra parte, ele recebia cada vez mais interrogações. Nesse mesmo momento, o homem de olhos cansados apareceu para limpar e sentar-se no mesmo local.
Dessa vez, sentou-se somente por alguns segundos e tornou a perder-se nas ruas. Então, meu pai questionou ao dono da casa quem era o indivíduo. A resposta veio com tom de tanto faz. “Ele já foi ‘normal’, mas quando era pequeno, a mãe fez uma ‘macumba’ pra matar o pai dele, por isso o menino bebeu tanto que ficou ‘doido’ assim”.
Sabe-se que existem ervas pouco estudadas cujas propriedades são desconhecidas, de modo que podem afetar o organismo humano de inúmeras formas. Ele teve a sorte de viver, pois afinal a bebida foi feita para matar. No entanto, por infelicidade, ficou com sequelas. O dono da casa continuou o relato, dizendo que ele estava “atacado” naquele dia e que era só falta de trabalho que o ocupasse.
A conversa acabou e seguimos viagem de volta para casa. No caminho, meu pai comentava algo sem muita importância, enquanto eu refletia sobre aquele homem. Uma criança havia sido vítima de um crime direcionado a outro. E eu, com meus pensamentos ridículos, acabara de matar essa criança adulta dentro de mim. Sim, terminei o serviço que a mãe dele havia começado, pois meu visível desconforto à presença daquele moço era o resultado do preconceito intrínseco à maioria das pessoas quando se trata de alguém com distúrbios ou doenças mentais. Ele não pediu para ser assim. Qual a vítima que pediu para ser vítima? Ainda que fosse vítima do acaso, da genética, das pressões sociais, da dor… ninguém pede para ser assim, visto como fora dos padrões.
Senti-me mal. Senti-me péssimo. Espero que minha reflexão, meu arrependimento e mudança de postura possam reviver aquele homem e tantas outras vítimas do descaso e preconceito. Além de repensar meus atos como ser humano, refiz minhas ideias como futuro profissional. Afinal, como ser bom profissional da saúde, trancafiado no meu mundo controlado com meus conhecimentos específicos e casos “rotineiros”? Agora que revi minhas ideias, posso atuar bem na minha profissão. Além disso, vou repassar essa simples experiência que mudou meu constructo para que outros mudem sua forma de pensar e agir. E, enfim, a saúde possa acontecer de forma plena, pois aquela criança gritou por ajuda. E vou jurar nunca negar socorro a ninguém.