Realidade de uma pessoa do ano de 2023, vivendo no Brasil como escravo há quase 40 anos
A prática contemporânea do trabalho escravo no contexto brasileiro, no século XXI, manifesta-se mediante a convergência de duas modalidades distintas: a primeira corresponde ao trabalho forçado ou compulsório, enquanto a segunda se refere ao trabalho executado em circunstâncias degradantes. Essa prática abominável transgride os princípios fundamentais dos direitos humanos, atingindo a esfera mais essencial da condição humana, ou seja, a dignidade (SIQUEIRA, 2010).
A existência do trabalho escravo se torna visível através das expressões faciais dos trabalhadores que manifestam as humilhações e as privações, literalmente, de um dos direitos humanos mais fundamentais: a liberdade. Sob a perspectiva do Estado Constitucional e Democrático de Direito, tais violações são completamente inaceitáveis. Como expresso na célebre máxima: a liberdade possui uma importância superior à própria subsistência material (SILVA; CALIL, 2011).
Apesar do atual estágio de desenvolvimento da sociedade contemporânea e do amplo repúdio a esta prática tão errada, e a notável prevalência da escravidão no século XXI passou a adotar a nova designação de “escravidão contemporâneo”. De forma contrária, em certos momentos, o Estado brasileiro adota uma abordagem divergente às medidas adotadas para o enfrentamento aos diversos tipos de escravidão contemporânea (SOUTO; SOUTO, 2020).
“O processo de internacionalização da vida cotidiana traz repercussões para o mundo jurídico, com questões ligadas às pessoas, à família e as transações comerciais, ao passo que, dessas relações, surgem litígios na esfera cível, penal e até mesmo a violação de direitos humanos. O trabalho escravo é um grave desrespeito aos direitos humanos basilares, que tem levado milhões de seres humanos a serem explorados e submetidos a condições desumanas, em detrimento do enriquecimento ilícito de outras” (SOUTO; SOUTO, 2020, P. 67652).
Fonte: Pixabay
A fim de compreender o fenômeno do trabalho escravo na contemporaneidade, é imperativo abandonar conceitos e perspectivas apoiadas da escravidão tal como conhecida no passado, uma vez que, embora existam raízes históricas do trabalho escravo que remontam à antiguidade e à Idade Média, essa constitui apenas uma das múltiplas facetas da escravidão contemporânea.
Outro aspecto relevante que distingue a escravidão contemporânea da escravidão “clássica” que ocorreu nas Américas durante os séculos XVIII e XIX é o fato de que, nos dias de hoje, não existe predominância de elementos raciais, mas sim uma prevalência da vulnerabilidade econômica das pessoas. Estas, devido a condições de extrema pobreza, são enganadas por meio de falsas promessas de ganhos financeiros rápidos.
Fonte: Pixabay
Também constitui um elemento diferenciador na escravidão contemporânea o fato de que a relação entre o explorador e o explorador é ainda mais deteriorada na atualidade. Ao contrário da visão clássica da escravidão, na qual o proprietário do escravo tinha a responsabilidade de zelar por sua produtividade, essa circunstância não existe nos dias atuais. Os escravos contemporâneos são tratados como praticamente descartáveis, sem qualquer preocupação com a manutenção de sua saúde ou garantia mínima de direitos. Isso evidencia que essa atividade é ainda mais lucrativa financeiramente nos dias de hoje.
Entre tantos brasileiros escravos, temos nosso personagem, apenas mais um e infelizmente mais um ser humano embarcado nesse processo de extinção dos direitos humanos. Um homem sem identidade, foi escravizado por quase 40 anos, não havia registro de sua existência, pouco se sabe sobre a história dele, além de que era conhecido como João do Brejo, apesar dele afirmar que nunca gostou desse apelido e prefere ser chamado pelo seu nome: João Ribeiro.
De acordo com o empregador, João chegou à fazenda em 1984, perdido e procurando por uma oportunidade de trabalho. E ali ele ficou, vivendo 39 anos em condições degradantes, sem registro civil e trabalhista e sem salário. João não existia nem para o sistema de saúde nem para o benefício da previdência.
João foi visto pelo mundo quando precisou ser atendido em um hospital, no final de 2022, por suspeita de pneumonia. E no hospital, verificaram que ele não tinha documento algum. A equipe de profissionais da instituição desconfiou e avisou à Assistência Social do município, que fez a denúncia ao Ministério do Trabalho e Emprego. Os auditores-fiscais fizeram uma operação e encontraram João trabalhando e sem condições mínimas para tal atividade.
João foi encontrado vivendo em uma casa sem a mínima condição de dignidade humana, pois ele dormia em uma espuma suja, encardida, não havia geladeira nem televisão, nem rádio. “O único dinheiro encontrado com João era um punhado de notas antigas do Brasil, como o cruzeiro”.
Depois de outras consultas e exames, foi identificado que ele é um paciente que tem diabetes e hipertensão, e claramente não fazia uso das medicações necessárias nem dos esquemas vacinais. Ele foi resgatado no fim de janeiro de 2023 de condições análogas à escravidão na fazenda de café Boa Vista, em Bueno Brandão, Minas Gerais, ele afirma que não recebia pagamento, “apenas trabalho e trabalho”.
Fonte: Agência Brasil
É difícil de acreditar que alguém consiga submeter um ser humano às condições em que esse senhor foi encontrado. Ele era uma pessoa que praticamente não existia no Brasil. E mesmo nesse contexto de escravidão, João Ribeiro afirma que gosta de trabalhar e o que lhe dá prazer “é roçar, levanta cedo, já vai no canto, já pega uma ferramenta de segunda a sábado”, mas que já sofreu muito nessa vida.
Grandes riquezas de uma minoria, grande escravidão de outra maioria.
Referências:
Programa Fantástico, Rede Globo de Comunicação. Conheça a história do João, escravizado por quase 40 anos: ‘Sofri e sofri muito”. Acesso em: <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2023/03/05/conheca-a-historia-do-joao-escravizado-por-quase-40-anos-sofri-e-sofri-muito.ghtml>.
SILVA, W. J. da.; CALIL, M. L. G. Trabalho Escravo: Uma afronta às garantias fundamentais Constitucionais em Pleno Século XXI. An. Sciencult Paranaíba v.3, n. 1, p. 235-241, 2011.
SIQUEIRA, T. M. L. de.; O Trabalho Escravo Perdura no Brasil Do Século XXI. Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v.52, n.82, p.127-147, jul./dez.2010
SOUTO, A. F. L.; SOUTO, P. V. B. Escravidão Contemporânea: Um dos males do Século XXI e a necessidade da Cooperação Jurídica Internacional para se combatê-la. Braz. J. of Develop., Curitiba, v. 6, n. 9, p.67650.-67659 sep.2020.