Os contos de fadas sempre tiveram grande importância no imaginário infantil e até mesmo dos adultos. Esses contos trazem em suas linhas a oportunidade de aprender sobre lutas, obstáculos, opressões, vitórias e finais felizes. Neles há um campo imenso de possibilidades de explicar fenômenos complexos na visão da criança, é claro que por vezes esses contos trabalham de uma forma mística, o que não lhes tira a linguagem facilitadora para a compreensão infantil em torno dos mais variados assuntos.
Os contos de fada têm uma estrutura que reflete os traços humanos mais gerais. Desempenham um grande papel porque através deles podemos estudar as mais básicas estruturas de comportamento. Mas para mim há também uma razão prática: através do estudo de contos de fada e mitos podemos vir a conhecer certos complexos estruturais, tornando-nos mais capazes de distinguir entre o que é e o que não é individual, e ver as possíveis soluções (VOZ-FRANZ, 1985, p. 18).
Se eu pudesse dar um palpite, diria que cerca da metade da população já proferiu a seguinte frase: Jogue suas tranças, Rapunzel. A famosa frase surgiu do conto de fadas que leva o nome da garota Rapunzel, presa em uma torre inacessível e criada por uma bruxa.
A história foi apresentada ao mundo pelos irmãos Grimm. Sua versão original conta que uma mulher grávida desejou imensamente comer legumes que estavam no quintal de sua vizinha feiticeira. O marido, ao saber do desejo de sua esposa, resolve roubar os legumes, mas a feiticeira o pega em flagrante, e decide puni-lo. Como punição ela exigiu que, ao nascer, a criança deveria ser dada à ela. O homem não teve outra alternativa a não ser aceitar.
Devido à sua beleza, a criança foi mantida presa durante toda a vida em uma torre inalcançável. A única maneira de chegar até ela era pelos enormes cabelos entrançados que Rapunzel tinha. Depois de algum tempo um príncipe descobre a linda garota e a salva da grande torre.
No entanto, como estamos em uma nova era, em que até mesmo os contos de fadas sofreram alterações, preferiu-se trabalhar com o conto Enrolados, produzido pelos estúdios Walt Disney. Nessa nova versão, Rapunzel é a filha do Rei, que precisou de uma flor mágica para se curar de uma doença, essa planta permitiu que Rapunzel obtivesse o dom da cura e da juventude, dando àquele a quem tocá-la a possibilidade de rejuvenescer. No entanto, ninguém sabia desse dom, exceto a bruxa, que resolve então raptar o bebê e prendê-lo em uma enorme e inacessível torre.
Rapunzel sempre foi criada com muito amor e carinho, a bruxa dedicou toda a sua vida para a criança, e é claro usufruiu do seu dom. A criança jamais poderia pisar os pés fora da torre, pois não era “seguro”.
– Por que eu não posso ir lá fora? – Rapunzel
– O mundo lá fora é perigoso demais, cheio de pessoas cruéis e egoístas. Quero você aqui, onde está segura. – Mãe-Bruxa
Na versão dos estúdios da Walt Disney, ao contrário de um cativeiro escuro e triste, Rapunzel desfruta de sua solidão de maneira que a torna mais leve, com atividades que a divertem: faz inúmeras pinturas, tem diálogos divertidos com seu animal de estimação e tem um dom incrível para a música.
Segundo Kris Mohandie, existe no mundo milhares de pessoas que vivem em cativeiros semelhantes ao de Rapunzel, em seu artigo o autor fala sobre as experiências do cativeiro humano. Para Mohandie todos os indivíduos que foram ou são vitimas de violência doméstica, perseguidos, o tráfico de pessoas, prostituição, cultos e seitas, escravidão, sequestros, ou até mesmo sob o domínio de um mais forte, é configurado como ‘cativeiro humano’.
Em Enrolados temos a visão de um cativeiro divertido, mas não deixa de ser um cativeiro, não há beleza nisso. A jovem está presa sob o domínio daquela que deveria priorizar sua saúde, aprendizado e educação, e pode ver somente o ser cruel que a cria. A mãe-bruxa, embora pareça se importar com a proteção de Rapunzel, preza inicialmente pelo seu próprio bem-estar.
Com o passar dos anos a jovem cultiva um único sonho: Conhecer as luzes. As lanternas flutuantes que toda a população do reino solta em homenagem à princesa perdida. É em busca deste sonho que Rapunzel sai em uma grande aventura, ao lado do ladrão – príncipe-, e descobre coisas além de sua imaginação, consegue finalmente sair do seu cativeiro. Mas ainda assim, a jovem fica apreensiva, pois acredita está cometendo um crime e que isso causará uma grande decepção em sua mãe. Fica evidente o sentimento de fidelidade e dedicação que Rapunzel dedica à mãe. Isso não nos deve causar espanto, porque faz parte do comportamento humano dedicar-se ao outro quando ele se dedica a nós.
É comum que muitas pessoas, por serem mantidas sob um ‘cativeiro’ sintam simpatia e até desenvolvam amor por àquela que a mantém presa. Segundo a Psiquiatria essa patologia é caracterizada como Síndrome de Estocolmo, por se tratar de um estado psicológico particular, onde um pessoa que está submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a desenvolver um sentimento de amor ou amizade perante seu agressor. A síndrome parte de uma necessidade inicialmente inconsciente.
Embora seja mantida presa e devota amor à mãe, a valorização e superproteção da mãe-bruxa, Rapunzel ainda possui um desejo de se autoconhecer, de saber quem de fato é, desafiando seu próprio agressor e fugindo de seu cativeiro.
Rapunzel de Enrolados é a clara imagem da mulher contemporânea, uma vez que, após muitos anos de lutas, ela consegue sua liberdade. A jovem quebra os estereótipos das princesas comuns dos inúmeros contos de fada, ao invés de esperar por um príncipe que a resgate, ela está à espera de uma só oportunidade, trabalhando nisso dia após dia, e quando finalmente a encontra, não deixa escapar, é a reinvenção da história que cabe perfeitamente na época atual.
Segundo a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, tem-se o conhecimento do processo de Individuação, para ele este processo seria o caminho de uma vida em direção ao próprio individuo, ou seja, a ampliação da consciência e a integração dos aspectos individuais, de modo que o indivíduo manifesta seu ser único que apenas ele pode ser. Nessa mesma linha tem-se
(…) todo indivíduo possui uma tendência para a Individuação ou auto desenvolvimento. Individuação significa tornar-se um ser único, homogêneo. Na medida em que por individualidade entendemos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si mesmo. Pode-se traduzir Individuação como tornar-se si mesmo, ou realização do si mesmo (PSIQWEB, s/d, s/p).
A história de Rapunzel em “Enrolados” transmite a mudança pela qual o mundo feminino está enfrentado ao longo dos tempos, reflete a individuação feminina, a busca pelo autoconhecimento e independência. Nessa versão a jovem é uma boa negociante, tem o poder de persuasão, salva a si mesma e o ladrão, não desvia do foco, e toma a iniciativa do primeiro beijo, enfrenta os perigos da vida longe da proteção materna, e enfrenta até mesmo a “mãe”. Tudo em busca de se descobrir, de saber quem é e o que é para o mundo.
Todo o processo de autoconhecimento enfrentado por Rapunzel não foi uma tarefa fácil, uma vez que ela estava diante de um novo mundo, um mundo sem muros ou sem a barreira que a mãe-bruxa oferecia como proteção, mas é justamente devido à esses obstáculos que a garota obtém com êxito sua liberdade, e uma nova opção de vida. Como propôs Jung, a individuação não é uma tarefa fácil e agradável, é na verdade uma batalha. O Ego precisa ser forte o suficiente para suportar as mudanças tremendas, para ser virado pelo o avesso devido o processo de Individuação.
Ao atingir 18 anos, Rapunzel perde os cabelos mágicos, e suas longas madeixas, deixando para trás a superproteção da torre e da mãe bruxa. Não traz mais a imagem de criança indefesa, imaculada e preservada, mas a imagem de uma mulher independente, com conhecimentos sobre si mesmo e com seus próprios objetivos.
Referências:
VON FRANZ, M. L: A Sombra E O Mal Nos Contos De Fada / Marie-Louise Von Franz; [tradução Maria Christina Penteado Kujawski]. — São Paulo: Paulus, 1985. (Coleção amor e psique).
Síndrome de Estocolmo: http://www.brasilescola.com/doencas/sindrome-estocolmo.htm
http://www.onanyotherday.com/tangled-a-critical-analysis-of-rapunzel/