“Há muito tempo atrás, numa terra distante, longe da civilização, existia um jovem rapaz chamado João de Santo Cristo. Esta é a sua história. Guardem com atenção essas palavras. E, lembrem-se: as drogas fazem você virar os seus pais.” (Faroeste Cabloco, Plateia Livre, parte II)
“Brasília é um futuro que aconteceu no passado. É o fracasso do sucesso mais espetacular do mundo. Brasília é uma estrela espatifada” (Clarice Lispector)
BSB, 1973: capital federal do Tédio com T bem grande pra você!
Renato Manfredini Jr, o Russo.
“_O que vai ser do Renato quando ele crescer? Ele é tão tímido!”
“Eu já sei o que eu vou ser; ser quando eu crescer…”
Renato, o patinho feio da ‘tchurma’ da Colina (Lá vem o Frankesntein), com seus coturnos, óculos e ar debochado, conseguia se destacar, nas palavras, nas letras, nos gestos, e, com isso, toda timidez desaparecia. O gênio, o artista, o poeta, o astrólogo: um pouco doido, um pouco meio assim, sei lá… acho que era o tipo de pessoa que metia-se dentro de si e ali encontrava o mundo. Mas, era um mundo estranho. E tinha medo. E tinha fome. Tinha delírios e sonhos.
“Quem me dera ao menos uma vez acreditar por um instante em tudo que existe. Acreditar que o mundo é perfeito, e todas as pessoas são felizes.”
Resolveu formar uma banda. A primeira. Não, não era o Aborto. Apresento-lhes: Renato, o desenhista: ‘Prazer, eu sou o Eric Russell, sou legal, sou virgem ascendente em peixes, tenho 23 anos, muita merda na cabeça, e vou fazer um som legal pra vocês, okay? Mas, assim, eu só toco em inglês.’
Com toda a licença poética desta narrativa em inventar as nuances do cantor – afinal só o nome aí é verdadeiro -, nascia a 42nd Street Band, e a descoberta, meio forçada por uma amiga: _ O que você vai ser quando você crescer? _ Denise, você acha que eu sou doido? Eu vou montar uma banda de rock!
Afinal, tribos são a única maneira de sobreviver individualmente.
Aqui, o poeta – embora ainda meio recluso na sua autodepreciação -, se revela ao mundo: Bem vindos ao Aborto Elétrico (Eletric Music for young hearts & minds).
“Muda o nome do conjunto, Renato! Esse nome é muito feio.”
“Mas aborto é a vida que vem da música!”
(…)
_ Professora, o que você acha que eu devo fazer da minha vida?
_ Renato, você seria um dramaturgo brilhante, mas não teria saco para manter uma trupe e repetir o texto noite após noite. Seria um diretor de cinema na linha do Glauber, livre e solto, mas não tem dinheiro para fazer filmes. Você pode, então, fazer o que está fazendo: rock. Gritar a sua mensagem. Que nem é sua, aliás.
_ Como assim?
_ Quando você canta numa banda chamada Aborto Elétrico, você está falando também do medo que todas as mulheres passam todos os dias. É uma declaração feminista.
(…)
Assim, Renato começa a rascunhar o próprio futuro, sem ter noção (ou talvez com toda a intenção) de que revelara ali muito de seu passado e presente. A música era sua forma de expressão, de exasperação, de demonização e exorcização.
As primeiras formas de falar de amor. Do seu amor. Da sua ‘opção’ sexual. “Aquele gosto amargo do teu corpo ficou na minha boca por mais tempo. De amargo, então, salgado ficou doce”. Renato na cova ‘pros’ leões. Sua primeira declaração de que não curtia as minas da cidade. Maurício veio bem depois, numa fase mais melancólica (“Às vezes faço planos, às vezes quero ir para algum país distante voltar a ser feliz”). O país distante não chegou a tempo. E Renato confessaria, minutos antes de morrer, à sua mãe, que só fora feliz na infância.
Toda genialidade, cedo ou tarde, leva a algum tipo de loucura. Renato era infeliz. E demonstrava isso em quase todas as letras e muitas vezes no palco mesmo. Renato era um ‘cordeiro’ solitário, depressivo e totalmente dependente das emoções. Renato não tinha medo da morte. Ele tinha medo da vida. Tinha medo do seu não encaixe no mundo em que vivia.
Não conseguia entender o atraso sócio-cultural em que seu país estava. E dissecava sua frustração em muitas de suas letras, onde falava sobre política e hipocrisia.
“Vamos comemorar como idiotas a cada fevereiro e feriado. Afinal, Que país é este? O Brasil é o país do futuro…”
E, talvez seja mesmo o país do futuro, porque não era o Brasil do presente do Renato. Sequer ainda é o nosso. Talvez nossos netos tenham mais sorte, e comecem a parafrasear Duas tribosde uma forma mais convincente.
Renato era obstinado com sua aparência (Narciso não devia ser um dos seus seres míticos preferidos), demorou a assumir sua homossexualidade, e, mesmo quando o fez, falava muito sobre a dor do amor, da perda, do que das nuances positivas.
A música Vento no litoral retrata bem isso. A idéia fixa do amor sem medidas, capaz de levar à loucura (no sentido real da palavra). Nela, Renato conta a história de uma pessoa que havia encontrado sua alma-gêmea (a escolha do cavalo-marinho aqui não foi aleatória), mas que acabou perdendo-a, e, com isso, começou a ter alucinações.
Neste ponto, sempre achei a personalidade de Renato com a de Cobain. Ambos eram pessoas que amavam demais os outros, mas de uma forma muito peculiar e triste mesmo, e se desprezam em igual proporção. Contudo, Cobain, no que tange à sua mortalidade física preferiu queimar se de uma vez do que se apagar aos poucos. Renato foi cometendo um suicídio lento, com dor, angústia, resignação e rebeldia.
Aonde está você agora, além de aqui dentro de mim? (…) Ei, ei, ei…olha só o que achei: cavalos-marinhos.
Certa feita, Erasmo de Rotterdam aduziu que a felicidade consistia em ser o que é. Talvez, esse fosse todo o problema de Renato. Ele não podia, ou não conseguia devido aos preconceitos da época, ser aquilo que ele realmente era. Expressar tudo aquilo que sentia. Viver da maneira que quisesse (sequer assumiu sua doença em público, como havia feito Cazuza). Isso, ele só fez com a música, não na vida real.
Ele tinha que ser o Júnior. Filho da classe média, transportado a Brasília pela força do destino. O menino de ouro, com QI e sensibilidade fora do normal. O professor. O pai. O brasiliense de criação. Mas, ele queria ser mais que isso. Queria poder se expressar de forma mais aberta na vida. Poder confessar seus pecados, e não empunhá-los goela abaixo sob doses de álcool.
Era difícil ter que dizer não a cada investida feminina- e essas aconteciam com freqüência, acreditem-, sem poder dizer de forma clara que aquela não era ‘sua praia’, que ele gostava de meninos e meninas, mas, dessas, não no sentido romântico de ser.
Sua rebeldia, e o conseqüente encontro com as drogas, talvez tenha muito a ver com essa necessidade de desmascarar-se. Renato se dizia punk, mas no fundo se auto-intitulava careta por não ser capaz de romper suas próprias barreiras.
“Você é tão moderno, se acha tão moderno, mas é igual aos seus pais. É só questão de idade, passando dessa fase, tanto fez e tanto faz.”
Muita coisa que Renato escreveu – a maioria, na verdade – era sobre si mesmo (isso não é uma característica exclusiva sua. A maioria dos artistas, de uma forma ou de outra, acaba se revelando através de sua arte, mesmo sem perceber). Embora cercado de muita gente, sempre fora um trovador solitário. Trancafiado em sua própria mente, com seus anseios frustrados.
“E Clarisse está trancada num banheiro e faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete, deitada num canto, seus tornozelos sangram…”
No início da carreira, ainda no Aborto, ele disse que o público não estava preparado para o tipo de som que eles faziam (Se, você quiser se divertir, invente suas próprias canções). E talvez não estivessem mesmo. Muita coisa foi vetada no início dos primeiros shows, afinal ninguém entendia que eu não quero mais viver; eu quero ser um vegetal; nada não tenho nada; não sinto nada; não vejo nada; não ouço nada; não quero nada; não espero nada a não ser uma faca faca faca faca faca; cortar minha carne com gilete; tomar comprimidos prá dormir e não acordar…
“Os mortos não podem voltar”
E o Aborto que poria tudo pra fora, foi-se.
E quem são vocês? Nós somos a Legião! Nós somos conseqüência de tudo o que o Júlio César fez. E, como legionários de Roma, viemos, vimos e vencemos.
Então, a pergunta se repete: So, Renato, what Will you be when grow up? _ I´m gonna be a very famous star. I wanna be a star.
E, dessa vez, o sonho se realizou.
BSB, 1982: capital federal da hipocrisia! Moramos na cidade, também o presidente, e todos vão fingindo viver decentemente, só que eu não pretendo ser tão decadente nãaao!
Fernando e Leonice viraram Eduardo e Mônica, e, na boa fase de Renato, eles ainda decidiram se casar. Um casamento indiano em algum lugar perto do mar. – Mas, o mar tá muito longe, um deles lembrou; vai ser aqui mesmo, e assim ficou. Foram pra Bahia e Ouro Preto; E o Eduardo foi parar lá no Banco Central. Cristalina, Sampa, Rio de Janeiro; E a Mônica dá aulas na escola normal; Eduardo e Mônica estão no Lago Norte; ele projetou a casa e ajudou construção; Só que nessas férias não vão viajar, porque o filhinho do Eduardo tá na recuperação…
Era o mestre dos conselhos, da chatice e da aberração.
– Qual o seu signo?
_ Câncer.
_ Câncer? Legal, você tem uma ligação forte com a lua… gostei de você! Tô fazendo um mapa astral. Quero fazer o seu!
Mas o astral muda. A Legião, que fora seu grande sonho – conquistado -, já não era suficiente para curar-lhe os males da alma, do corpo e do coração.
“Tudo é dor, e toda dor vem do desejo de não sentirmos dor.”
Renato implorava por um reconhecimento e uma aceitação espiritual que não era possível àquela época. Renato era precoce. Abortou-se antes do tempo. Ele não era dali.
Um homem à frente do seu tempo. Quebrou várias barreiras, é verdade. Fez sucesso. Tornou-se imortal. Mas, não conseguiu amar a si mesmo. Passou a se enclausurar, a não sair, não atender aos telefonemas, não receber visitas. Enfim, seu corpo e mente encontraram-se imersos na escuridão.
O poeta ainda vivia, mas só falava de dor e solidão. O disco A tempestade retrata bem essa fase de Renato. Engano dele quando dizia que não tinha se perdido, mas que mesmo assim, havia sido abandonado. Renato se perdeu em seu próprio ser. Ou melhor, perdeu-se por não poder ser o que realmente era. Abandonou-se.
“Digam o que disserem, o mal do século é a solidão. Cada um de nós imerso em sua própria arrogância, esperando por um pouco de afeição.”
O homem faleceu em 11 de outubro de 1996. Venceu a vida, encontrando a morte!
O mito ainda vive.
Se me perguntarem se eu acho que ele morreu de Aids (ou das conseqüências dela) ou do uso abuso de álcool e drogas, eu direi com plena convicção: Renato cansou de viver. Suicidou-se à sua maneira.
Foi covarde (ou muito corajoso) e se matou aos poucos, do jeito que pôde. Cansou de não ser compreendido. Cansou de ser julgado, já que quem insiste em julgar os outros sempre tem alguma coisa pra esconder.
Afinal, o que fazer quando o sonho se torna maior do que o sonhador? Morrer parecia uma opção. Estrelas também morrem. Renato, de fato, tornou-se uma estrela. Morreu, mas seu brilho ainda continua-se a propagar no universo.
“Vinte e nove anjos nos saudaram e tive vinte nove amigos outra vez.”
Urbana Legio Omnia Vincit. Força Sempre!
Nota: Os diálogos do texto e algumas referências foram extraídos do livro “Renato Russo: O filho da Revolução” de Carlos Marcelo, Editora Agir.