Robert Mapplethorpe: entre o erótico e o sublime

Robert Michael Mapplethorpe era um homem dividido. Em 1977, apenas para ilustrar tal fato, Mapplethorpe inaugurava, no mesmo dia e na mesma hora, o que se pode designar como suas duas primeiras exposições que alcançaram algum sucesso. A apenas poucos metros de uma galeria a outra, ele mostrava suas duas faces. Em um dos espaços, para uma assistência mais requintada, o fotógrafo expunha seus retratos e suas naturezas mortas; na outra galeria, via-se o tema que o fascinou durante quase toda a sua vida: a estética do sexo sadomasoquista e o submundo guei. Essa última exposição estava voltada para um público saído dos bares underground da cidade de Nova York.

Self Portrait, 1980

Não poderia ser diferente. Mapplethorpe nunca encontrou um ambiente completamente propício para a exposição de seus trabalhos que traziam a temática sexual, apesar de seu incontestável apuramento estético e rigor técnico. O fotógrafo descobria caminhos alternativos. Suas flores, talvez, sejam o melhor exemplo de tais subterfúgios.

Calla Lily, 1984

Mapplethorpe odiava as flores ao mesmo tempo em que fez, talvez, as melhores fotos de flores que se conhece hoje. Como seria possível? Quiçá a resposta está na frase que, no fim de sua vida, o fotógrafo pronunciou por ocasião de uma entrevista a uma revista: “Eu fotografo flores como quem fotografa uma pica”. Basta olhar para a maioria de suas flores para se ter uma idéia da justeza dessa afirmação. O artista, mesmo diante de flores, fotografava o erótico. E sua relação com as flores era a mesma que mantinha com a maioria de seus modelos masculinos: uma relação fortemente sexualizada e objetal. É possível que isso explique o fato de o fotógrafo jogar suas flores/modelos no lixo imediatamente após suas fotos/coitos.

Double Jack in the Pulpit, 1988

Nascido em 4 de novembro de 1946, terceiro filho de uma prole de seis, Mapplethorpe lutou durante toda a sua infância e parte de sua adolescência para conquistar um lugar junto aos carinhos do pai. Contudo, o pequeno Robert sempre encontrou um forte concorrente: seu irmão Richard, cerca de um ano e meio mais velho. Richard era uma criança expansiva, bonita e máscula, enquanto Robert, descrito pelo pai como “nervosinho”, sempre fora tímido, distraído, deslocado e fisicamente mais frágil que o irmão. Cedo, a mãe de Robert percebera a diferença entre os filhos e, naturalmente, Robert passara a ser seu preferido. Contudo, com o nascimento de outros filhos (mais três, depois de Robert), a atenção de sua mãe teve de se voltar para os menores, fazendo com que o pequeno Robert permanecesse sem um lugar muito claro na dinâmica de sua família.

A família Mapplethorpe prezava por uma vida metódica e sem grandes novidades. O avô de Robert, apesar de declaradamente odiar o serviço bancário, fora funcionário exemplar, durante cinqüenta anos, em um banco. Casados em 20 de junho de 1942, os pais do fotógrafo, Harry e Joan Mapplethorpe, após a Segunda Guerra Mundial, mudaram-se para o bairro do Queens, na periferia da cidade de Nova York, e viveram lá toda sua vida conjugal. Moravam em um conjunto operário – de casas brancas, com quatro quartos, idênticas entre si – chamado de Floral Park. Na década de 50, para se ter uma idéia do ambiente de Floral Park, o simples fato de se mudar a cor da fachada de uma casa provocava comentários e mesmo revolta dos vizinhos. Foi nesse ambiente completamente avesso ao novo que Robert Michael Mapplethorpe foi criado.

O pai de Robert, Harry Mapplethorpe, trabalhou durante quase sua vida inteira nos Laboratórios Underwriters, em Manhattan e, apesar de ser um dos poucos habitantes de Floral Park com diploma universitário (Harry era engenheiro), não conseguia ganhar substancialmente mais que seus vizinhos. Harry Mapplethorpe amava a rotina e a continuidade, prezava por manter o controle de todas as situações, o que fazia com que ele exercesse grande poder sobre os filhos. As manias de Harry beiravam a esquisitice: colecionava peixes tropicais, moedas, selos e construía relógios cuco. Gostava ainda de fotografia (embora se dedicasse bem mais ao processo de revelação e cópia das fotos do que propriamente ao que a fotografia poderia lhe proporcionar de criatividade e inovação) e consertava pequenos aparelhos eletrodomésticos (como batedeiras e aspiradores de pó).

A mãe de Robert, Joan Mapplethorpe, era uma mulher expansiva e de hábitos arraigados. Bem quista na vizinhança de Floral Park por sua simpatia e personalidade forte, manteve até sua velhice o hábito de se reunir com as amigas para o boliche, todas as terças feiras. Joan tinha uma espécie de obsessão por limpeza e organização da casa, coisa que lhe levava, não raro, à exaustão completa. Levantava pela madrugada para continuar a limpeza do dia que, parecia-lhe, não fora satisfatória. Joan, que sofreu vários episódios de depressão durante a vida, mais tarde foi diagnosticada como portadora de transtorno afetivo bipolar.

Robert Mapplethorpe teve que tentar se adaptar à mediocridade de seu ambiente. Nem um pouco ligado a atividades atléticas, teve de lidar com o sucesso esportivo de seu irmão Richard. A relação entre eles ia da indiferença à hostilidade aberta e, apesar de dividirem um quarto por boa parte de suas meninices, havia como que uma linha imaginária mas intransponível entre “o lado de Robert” e “o lado de Richard”.

Richard era tido como o exemplo de um bom filho. Jamais questionava as decisões do pai e isso era uma atitude que gerava muita animosidade entre os dois irmãos. Apesar dessa animosidade ou por causa dela, Robert Mapplethorpe tentava, de uma ou outra forma, seguir os passos do irmão mais velho. Foi nesse sentido que Robert, seguindo Richard, acabou por entrar em um grupo de adolescentes católicos, ligado à igreja de sua comunidade, que era tido como muito conservador e machista. Foi ainda seguindo Richard que Robert, ao final de sua adolescência, já na universidade, optou por ingressar em um destacamento militar extremamente rigoroso.

Robert, contudo, intimamente nunca pertencera de fato a tais grupos. Antes de darem um real lugar a Robert ou fornecerem uma identidade, tais grupos faziam com que ele fosse duplamente excluído. Excluído de seu ambiente originário pela própria associação a grupos fechados e não totalmente aceito por essas agremiações.

Robert Mapplethorpe era um estranho em seu próprio meio. Mostrou muito cedo habilidades com o desenho, mas tais habilidades nunca foram realmente valorizadas nos diversos ambientes que freqüentava. Vindo de uma família católica, Robert, ainda criança, mostrava grande interesse em desenhar a Virgem Maria. Fazia-o decompondo o rosto da Virgem de tal forma que quase sempre seus desenhos eram vistos como grosseiros e mal elaborados. Durante toda a vida, Robert Mapplethorpe seria fascinado por temas religiosos, que iam da magia à astrologia, da adoração ao demônio ao catolicismo mais fervoroso. Após sair de casa, durante toda sua vida, o artista manteve um altar em seu quarto, onde se viam imagens de Cristo crucificado, crânios, demônios e símbolos esotéricos. Robert também não se encontrava nas coisas da religião.

Com cerca de 12 anos, Robert Mapplethorpe teve contato, pela primeira vez, com uma revista destinada ao público homossexual masculino, na qual havia gravuras de teor sexual. Aquilo teria exercido tão grande impacto sobre a sexualidade de Robert que, durante o resto de sua vida, o fotógrafo lembraria desse episódio. Como era ainda menor de idade, portanto proibido de ter acesso a tais revistas, Robert decidiu roubá-las de um comerciante cego. Contudo, em sua primeira tentativa, foi pego e, por muito pouco, sua família não ficou sabendo. Decidiu, a partir daí, eliminar de sua vida esse aspecto de sua sexualidade. Ainda por muitas semanas a fio, Robert teria pesadelos com o jornaleiro cego.

Em 1963, Mapplethorpe, a conselho do pai, ingressou no Pratt Institute, mas a contragosto de Harry, Robert se matriculou no curso de arte daquela escola. O próprio Harry havia sido aluno do Pratt cerca de 25 anos antes e gostava do fato de que o instituto tivesse uma rígida disciplina e uma abordagem educacional bastante pregmática. Harry acabou por convencer Robert a fazer sua especialização em ilustração e tipografia. Robert, contudo, jamais terminaria aquele curso apesar de freqüentá-lo por cerca de quatro anos.

Em setembro de 1963, Robert decidiu sair de casa e morar em um apartamento alugado. Na época, contava com o pequeno salário relativo a seu ingresso em um grupo militar, vinculado ao Pratt, com características fascistas e extremamente homofóbico. No grupo, por sua sensibilidade e gentileza, Robert servia como uma espécie de saco de pancadas para os integrantes mais antigos.

Foi no Pratt Institute que Mapplethorpe, pela primeira vez, teve contato com drogas. Na época, o LSD estava em alta e gozava de grande popularidade entre os jovens. De 1966 até sua morte, as drogas lhe seriam companheiras inseparáveis. Maconha, cocaína, LSD, mescalina e anfetaminas fariam parte de seu cotidiano. É possível que Robert, a partir de então, jamais fotografou sem antes se drogar.

Self Portrait, 1975

Em 1967, Robert conhece Patti Smith, mais tarde estrela do rock-punk, e passa a dividir um apartamento com ela. Robert e Patti tiveram um intenso caso de amor por cerca de dois anos e, mesmo depois de separados, foram amigos por toda a vida. Ambos tinham o sonho de viver de suas artes: Patti, de poesia e música; Robert, de artes plásticas (naquele tempo, ele ainda não usava a fotografia como meio de expressão).

Na época, Robert lutava contra sua homossexualidade e seu relacionamento com Patti Smith deu-lhe uma espécie de segurança. Patti, apesar de declaradamente heterossexual, freqüentemente se vestia com roupas masculinas e, fisicamente, parecia com Robert, que sempre teve uma aparência andrógina. Chegavam mesmo, quando juntos, a serem confundidos um com o outro. Em 1967, quando Patti anunciou o fim do relacionamento, Robert avisou-lhe que se tornaria guei.

Como principal porto de desembarque das tropas americanas que haviam lutado no pacífico durante a Segunda Guerra Mundial, São Francisco, na época, contava com uma grande população homossexual, originada do contingente de homossexuais expulsos das forças armadas após o fim dos combates. Foi para lá que, em 1968, Robert decidiu fazer uma viagem de alguns dias para ver “de uma vez por todas” se era mesmo guei.

Do final da década de sessenta para o início dos anos setenta, Robert entrou em contato com a cultura guei sadomasoquista. Nessa época, havia uma glamourização da estética sadomasoquista, conhecida como “brutalidade chique”, retratada principalmente nas revistas de moda. Contudo, em tais revistas, o sadomasoquismo era representado sempre em sua versão heterossexual. Mapplethorpe passou, então, a freqüentar regularmente (coisa que faria até seus últimos dias) os bares gueis sadomasoquistas em busca de parceiros sexuais.

Ken Moody and Robert Sherman, 1984

Robert Mapplethorpe, segundo entrevista posterior, descrevia como um verdadeiro frenesi a sensação que teve quando se deparou com tal cultura. Teria, segundo ele mesmo dissera, encontrado finalmente “sua forma de sexo”.

Até a década de setenta, Mapplethorpe não usava a fotografia em seus trabalhos. Na época, trabalhava principalmente com montagens de diversos objetos (roupas, bijuterias e pedaços de tecidos) sobre tela. Foi apenas a partir dos primeiros anos da década de setenta que passou a se arriscar pelos caminhos da fotografia. Sem quase nenhum rigor técnico, usava uma câmera Polaroide para seus trabalhos.

Em 1972, Robert conheceu Wagstaff, um colecionador de arte bem sucedido e bem mais velho que ele, que lhe acompanhou e lhe protegeu durante quase toda sua carreira. O fotógrafo teve um relacionamento duradouro e tumultuado com Wagstaff, principalmente pelo comportamento sexual de Robert.

Ajitto, 1981

Na época, o fotógrafo estava extremamente fascinado pelo submundo sadomasoquista guei e isso teria virado uma espécie de obsessão sua. Embora Wagstaff nunca lhe tenha exigido exclusividade, o comportamento de Mapplethorpe era cada vez mais difícil de tolerar. Freqüentemente, saía á noite à procura de parceiros sexuais que compartilhassem suas fantasias. Nunca estava exatamente saciado e, freqüentemente, transava com vários homens toda noite. Essa era a forma de Robert encontrar seus modelos. Suas fotos de conteúdo sadomasoquista eram freqüentemente feitas durante ou logo após o ato sexual.

Em 1973, apresentou sua primeira exposição fotográfica já com os temas que pontuariam toda sua carreira: retratos, flores e fotos eróticas de teor sadomasoquista.

Com a convivência com Wagstaff, que provinha de uma tradicional família americana, Robert passou a viver em dois mundos completamente diferentes. Essa era uma conhecida habilidade de Mapplethorpe: transitar em ambientes completamente opostos. Essa sua versatilidade lhe rendeu importantes contatos no mundo da arte.

Durante toda a década de setenta, Mapplethorpe lutaria tanto com a rejeição relativa ao conteúdo de suas fotos quanto com a própria dificuldade de a fotografia se estabelecer como arte. Inegavelmente, Mapplethorpe foi um dos grandes responsáveis pela mudança do status da fotografia ocorrido, principalmente, a partir dos anos oitenta, época em que obteve reconhecimento em nível mundial, apesar das freqüentes censuras que sofria a cada exposição. Seus contatos na Europa, propiciados por Wagstaff, rendiam-lhe alguma fama, principalmente em Londres.

Foi na década de oitenta que Robert conheceu definitivamente a fama. Apenas em 1981, Mapplethorpe faria dez exposições individuais em cinco países diferentes. Nos últimos 10 anos de sua vida (1979 a 1989), fez 69 exposições individuais, participou de 5 livros e 15 catálogos.

Foi também nos anos oitenta que surgiu a GRID (Gay-Related Immune Deficiency), mais tarde conhecida como AIDS. Vários amigos e parceiros sexuais de Mapplethorpe estavam morrendo e não se sabia muito bem a razão. A síndrome atingia, sobretudo, homens homossexuais brancos. Nessa época, Robert tinha uma diarréia crônica provocada por amebíase intestinal, atribuída a seus hábitos coprófilos. Em 1982, internou-se pela primeira vez por um quadro que hoje teria sido diagnosticado como conseqüência da infecção pelo vírus da AIDS. Contudo, na época, o vírus ainda não tinha sido isolado e os exames imunológicos só apareceriam dois anos mais tarde.

Depois do diagnóstico de AIDS, em uma espécie de tentativa de remissão, Robert passou a fotografar temas de uma erótica heterossexual. Contudo, tais fotografias jamais alcançaram o sucesso de seus temas tradicionais, já que – mesmo quando se debruçava sobre temas explicitamente sexuais, o fotógrafo, através de um inteligente jogo de luz e do uso de filtros, obtinha uma aura lírica para suas fotos.

Robert Michael Mapplethorpe morreu de AIDS, no auge de sua carreira de fotógrafo, em 16 de março de 1989, aos 42 anos, tendo aproveitado muito pouco de sua fama. Apenas no mês de dezembro de 1988, cerca de 3 meses antes de sua morte, vendeu algo em torno de U$ 500.000,00 em fotografia.

Mapplethorpe havia virado uma febre entre os compradores de arte e marcara indelevelmente tanto o mercado da fotografia quanto toda a cultura americana.

Médico psiquiatra. Doutor e Mestre em Psicologia pela UNESP/Assis.