“A Garota Dinamarquesa” e o fim da era das certezas

Com quatro indicações ao OSCAR:

 Ator (Eddie Redmayne), Atriz Coadjuvante (Alicia Vikander), Figurino e Design de Produção 

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Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
Entendemo-nos porque nos ignoramos.
A vida que se vive é um desentendimento fluido,
Uma média alegre entre a grandeza que não há
E a felicidade que não pode haver.

 Fernando Pessoa, in “Mensagem”.

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Dirigido por Tom Hooper, “A Garota Dinamarquesa” é um drama norte-americano que concorre a quatro estatuetas no Oscar 2016 (Melhor Ator, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Design de Produção e Melhor Figurino) e aborda um dos temas mais atuais e instigantes das ciências humanas, a teoria queer. O longa é baseado num romance sobre a vida de Lili Elbe (Eddie Redmayne), que nasceu Einar Mogens Wegener e foi uma das primeiras pessoas a se submeter a uma cirurgia de mudança de sexo no mundo. A obra traz questões ontológicas e existenciais, além de abordar com singularidade “o relacionamento amoroso do pintor dinamarquês com Gerda (Alicia Vikander) e sua descoberta como mulher”.

Coincidentemente ou não, dias depois de ler uma curta análise sobre as últimas obras de David Bowie, por ocasião de sua morte, e de perceber a forma sensível e apurada com que ele lidou com a destruição das bases do pensamento que prevaleciam até o início do século XIX, acabei por assistir o filme americano que ecoa, em alguma medida e dentre outras coisas, com os excertos pulverizados nas produções de Bowie – um “camaleão” que compendiava na aparência e no fazer artístico, parte da dinâmica social e psicológica das últimas décadas.

Assim como em Bowie, “A Garota Dinamarquesa” – além de apresentar-se como um relato histórico acurado para a teoria de gênero – tem como pano de fundo a consolidação da simbólica morte do Deus cristão (já profetizada por Nietzsche), a compreensão de tempo e espaço pela via da relatividade de Einstein (este, não iremos nos aprofundar) e, por fim, a descoberta do inconsciente por Freud – ampliada magistralmente por Jung. Somados, tais pontos levariam a um “alargamento” do que viria a se configurar como uma espécie de autopoieses do indivíduo e a um amadurecimento do humanismo liberal contemporâneo. Além, claro, de referendar as posições que questionam a “rigidez” com que eram tratados os papéis sociais destinados a homens e mulheres.

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E de que forma estes aspectos estão presentes enfaticamente em “A Garota Dinamarquesa”? Na medida em que o longa retrata a fase aguda da transição de uma época calcada em certezas absolutas para um período profundamente permeado pelo sentido de que tudo o que pensávamos até então poderia estar errado, a começar pela “austera” delimitação de homem/mulher.

Dentre os tópicos mais tocantes, o fato de a efervescente sociedade moderna, a partir de Freud, perceber que poderia haver “outro ser humano dentro do ser humano”, aliada à revolução copernicana de Kant, resultou na formação de indivíduos com um profundo sentido de autopercepção, de “delimitação e identificação do eu em contraposição ao outro” e, por fim, detentor de uma estrutura interna mínima – já sem tanta pressão das convenções coletivas – para pôr em prática as argúcias pessoais mais originais, como a troca de sexo por entender que a genitália herdada (no nascimento) não corresponde ao panorama psíquico adulto.

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Há, portanto, a consolidação “da morte do Deus cristão” na medida em que se coloca em xeque – e mesmo rechaça-se – a legislação externa (transcendental) sob a própria vida. Além disso, os sujeitos passam a abraçar – inclusive com o ônus decorrente das escolhas, como fica claro no filme – suas existências, a partir de suas próprias vontades, o que acaba por transformar estes indivíduos em protagonistas, logo, em criadores e responsáveis por pavimentar seus futuros. Trata-se de um processo que ainda está em formação e que já se mostrou como um dos mais emblemáticos na recente história da nossa espécie, cujos resultados ainda são imprevisíveis.

Transgerenidade

Lili Elbe é um marco para a teoria queer, justamente por compor o balizamento, a gênese – na prática – de um movimento de “política pós-identitária” que tenta superar a abordagem binária homem-mulher. Pelo estudo/observação das minorias sexuais, tendo por base disciplinas como sociologia, filosofia, antropologia, psicologia e estudos culturais, dentre outras, pretende ampliar o entendimento acerca da constituição sexual. Os componentes sociais passam a ocupar forte espaço, em detrimento da predominância do viés exclusivamente biologicista (determinista).

Trata-se de uma abordagem que nega a oposição entre homens e mulheres, e que enxerga na cultura e trocas sociais – e o impacto que as mesmas exercem sob os indivíduos – a verdadeira origem do processo de “sexualização” do sujeito. Desta forma, a heterossexualidade, a homossexualidade e a bissexualidade não passariam de formações de identidades sociais estabelecidas, com a primeira (aceita como “normal”) prevalecendo sobre as duas últimas (“desviantes”); as três expressões, para a teoria de gênero, ainda são fruto de culturas sexuais normativas, limitantes e, em alguma medida, excludentes entre si.

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A transexualidade, a travestilidade e a intersexualidade, por sua vez, são apontadas como culturas sexuais não hegemônicas. Logo, têm caráter subversivo e diametralmente oposto às normais sociais prescritas, sobretudo no que tange ao comportamento sexual e às relações amorosas de maneira geral.

Isso se dá porque a teoria queer simplesmente afasta qualquer tentativa de emparedar os indivíduos em estruturas de caráter universal (homem ou mulher, homossexual ou heterossexual). Com isso, defende que cada pessoa contém uma gama de variações culturais – onde nenhuma pode reclamar superioridade sobre qualquer outra – que, por fim, acaba por nivelar todas as identidades sociais como anômalas. Esta abordagem tenta fazer cair por terra toda tentativa de classificação entre o “normal” e o “desviante”.

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Coadjuvante que se agiganta

No mais, a atriz Alicia Vikander encarnou uma Gerda de dá inveja a qualquer Ivete Sangalo da vida. De personalidade forte e destemida, ela se agiganta ao passar de apêndice (inclusive na falta de reconhecimento artístico, no início da carreira) à posição de destaque (indispensável, registre-se) no turbulento percurso que transformou Einar Mogens Wegener em Lili Elbe.

No ínterim, percebe-se em Gerda uma mulher que supera os próprios medos e apegos, e que transforma o amor conjugal numa expressão mais universal de afeto, em que o bem-estar do cônjuge vem em primeiro lugar, nem que para isso tenha que se sacrificar a própria vida.

Esta postura resultou numa total entrega e confiança por parte de Lili. Isso ocorreu porque as restrições que estreitam e aprisionam – e que poderiam muito bem estar no repertório de Gerda – foram substituídas pela constante tentativa de (re)conhecer o outro que, em certa medida, está além de qualquer classificação. Ao final, havia a tentativa (de Gerda) de “experimentar” a si mesma.  Trata-se de uma atitude que demonstra um elevado nível de maturidade e de desprendimento, em que pese os momentos de sofrimento e de angústia.

“A Garota Dinamarquesa”, com isso, acaba por se configurar numa obra que demonstra a complexidade – e grandiosidade – de parte da constituição humana. É um convite para se aproximar do “absolutamente outro”, num movimento em que o estranhamento e o medo devem ser superados pela empatia e pela abertura. Provavelmente é um filme que se tornará um clássico.

Crítica

Destoante desta posição, a teórica ateia, acadêmica, ensaísta, crítica de arte e crítica social americana Camille Paglia (que esteve recentemente no Brasil) diz que a teoria de gênero representa, em última medida, uma espécie de derrocada da civilização Ocidental. Homossexual assumida – e muito criticada pelo movimento feminista –, Paglia é autora do famoso livro “Personas Sexuais”, e apresenta-se como uma das intelectuais contemporâneas mais enérgicas na contraposição a elementos da citada teoria.

Para Paglia, apesar de ela própria ser muitas vezes identificada como transgênero, o que, em alguma medida, é verdadeiro – já que ao nascer ela não se identificou com o papel que lhe apresentaram na polarização sexual vigente à época –, ainda assim ela considera que só existam fundamentalmente dois sexos, o masculino e o feminino, que são determinados biologicamente. “De qualquer forma, comecei a escrever sobre a androginia, que está no limite entre estes dois polos, que fica na área cinzenta entre os extremos do cérebro. No entanto, trata-se de uma quantidade muito pequena de pessoas [que se enquadram na androginia, ou seja, gêneros autênticos que são ambíguos]”, diz Paglia, para quem “a propaganda dos transgêneros faz alegações muito infladas sobre a multiplicidade de gêneros”.

Camille Paglia diz que, mesmo atualmente com todos os avanços, a cirurgia de redesignação sexual “não pode mudar o sexo de ninguém […], uma vez que só se pode identificar como um ‘homem trans’ ou como ‘mulher trans’”. No entanto, defende a americana, “toda célula do corpo humano, o DNA dessa célula segue codificado para seu nascimento biológico”.

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Ela diz que o que mais a preocupa é a popularidade e a disponibilidade da cirurgia de redesignação sexual. “Alguém que não sente que pertence ao gênero biológico é encorajada a intervir no processo”, diz. Diferente do que ocorreu no caso de “A Garota Dinamarquesa”, onde Lili Elbe, já adulta, pondera e decide pela intervenção, atualmente “pais estão sendo encorajados a submeter às crianças a tipos de procedimentos […], como a utilização de hormônios para a desaceleração da puberdade, e até manipulações cirúrgicas”. Paglia considera estas investidas equivocadas, tendo em vista que “as pessoas devem esperar até terem idade para dar consentimento”. De acordo com a ensaísta e acadêmica, “até na adolescência é cedo demais para dar este salto [cirúrgico], já que as pessoas crescem, mudam [de ideia] e se adaptam”.

Por fim, Paglia diz que no estudo histórico realizado para o livro “Personas Sexuais” identificou padrões cíclicos, em que nas fases mais avançadas ou decadentes de uma cultura, “quando se começa o declínio [desta cultura] você tem um surgimento de fenômenos transgênero. Isso seria o sintoma do colapso de uma cultura”, fruto do liberalismo humanista contemporâneo. A teórica diz que o atual surgimento e recrudescimento do Estado Islâmico, por exemplo, é uma resposta a este movimento.

Curiosamente, em alguns países islâmicos considerados “linha dura” em relação à homossexualidade, como o Irã, é encorajada a cirurgia de mudança de sexo. Isso ocorre para que rapidamente os indivíduos que se julgam ter nascido com o sexo errado possam se enquadrar numa das duas polaridades heterossexuais dominantes. O país só fica atrás da Tailândia no número de cirurgias de troca de sexo. A homossexualidade (masculina, sobretudo) continua sendo punida com castigos físicos e até pena de morte.

Mais sobre “A Garota Dinamarquesa”

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À esquerda, Lili Elbe, quando se identificava como homem. Nas imagens do centro de da direita: Elbe nos anos 30.

De acordo com recente texto publicado no jornal El País, a história de “A garota dinamarquesa” começa em 1925. Einar e Gerda Gewener são um casal de ilustradores unido desde o começo do século XX. Casaram-se jovens, ele com 22, ela com 19, quando ainda estudavam na escola de arte de Copenhague. Einar é um paisagista de renome (ganhou o prêmio Neuhausens em 1907), e as delicadas ilustrações de Gerda mostrando jovens damas cheias de glamour aparecem habitualmente na Vogue francesa e na La Vie Parisiense. Um casal invejável e muito bem sucedido. Uma tarde, uma das modelos de Gerda não aparece no ateliê.

Einar se voluntaria para ajudá-la e coloca um vestido de seda que se transforma numa revelação vital. Sente-se tão à vontade com a roupa que decide passar a se vestir de mulher e a posar habitualmente desse jeito para sua esposa. Fará o mesmo também, esporadicamente, durante viagens à França e à Itália. Quando se instalam definitivamente em Paris, Einar abandona sua masculinidade e se apresenta ao mundo como Lili, a irmã de Gerda. Gerda mantém aventuras com outras mulheres, e os dois dão festas selvagens para o mundo artístico parisiense dos anos 1930. Essa é parte da extraordinária vida de Lili Elbe, uma das primeiras pessoas submetidas a uma cirurgia de mudança de sexo da qual se tem notícia.

Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/01/cultura/1441141530_264923.html

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* Disponível na Amazon.com, pela WS Editora.

REFERÊNCIAS:

Sinopse de “A Garota Dinamarquesa”. Disponível em < http://www.adorocinema.com/filmes/filme-140552/ >, Acesso em 16/01/2016;
David Bowie: sobre a vida, a morte e o significado da existência. Disponível em < http://www.fronteiras.com/entrevistas/david-bowie-sobre-a-vida-a-morte-e-o-significado-da-existencia >, Acesso em 15/01/2016;
Eddie Redmayne vive primeira trans conhecida em ‘A garota dinamarquesa’. Disponível em < http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/01/cultura/1441141530_264923.html >, Acesso em 15/01/2016;
Análise da cena de ciúmes de Ivete Sangalo. Disponível em < http://www.brasilpost.com.br/anna-haddad/ciume-ivete-relacoes_b_8919598.html >, Acesso em 15/01/2016;
Roda Viva entrevista Camille Paglia. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=KlYR1isM2o8 >, Acesso em 15/01/2016;
Irã diz sim à transexualidade. Disponível em < http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/ira-diz-sim-a-transexualidade-aoao2u271id5pekjf50a13qry >, Acesso em 16/01/2016;
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;
O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;
MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001;
PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia. São Paulo: Leya Brasil, 2013.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

Garota Dinamarquesa cartaz

A GAROTA DINAMARQUESA

Direção: Tom Hooper
Elenco:
Eddie Redmayne, Alicia Vikander, Amber Heard, Tusse Silberg;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação:
14

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.