Quem tem porquê viver pode suportar quase qualquer como.
Nietzsche
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Foi em meio aos horrores da Segunda Guerra Mundial, a partir da experiência em campos de concentração, que Viktor Emil Frankl, um judeu, faz emergir a Logoterapia, também chamada como psicologia do sentido, ou a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia. Tal teoria fundamenta-se nos pressupostos humanístico-existenciais. A logoterapia é permeada pelo existencialismo cristão de Soren Aabye Kierkegaard (1813 -1855). Para este a existência precede a essência, esta afirmação salienta que o sujeito é um ser único e mestre dos seus atos e, por conseguinte, do seu destino. Este postulado é o cerne da angústia existencial, ou seja, ao se dar conta que o “Eu” é o próprio legislador da sua vida e ação, transportam o sujeito a um vazio de sentido (ALMEIDA, 2007).
Frankl visava compreender o ser humano em sua totalidade, o qual necessita de liberdade e é constituído pela capacidade de suportar o sofrimento, mesmo quando a vida parece não ter significado (RODRIGUES e BARROS, 2009). Como ressalta Moreira e Holanda (2010), a logoterapia concebe uma visão humana que se difere das demais concepções psicológicas de seu tempo, na medida em que propõe a compreensão da existência mediante fenômenos especificamente do ser humano e a identificação de sua dimensão noética ou espiritual.
Para Frankl (1984) a busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida, “esse sentido é exclusivo e específico, uma vez que precisa e pode ser cumprida somente por aquela determinada pessoa. Somente então esse sentido assume uma importância que satisfará sua própria vontade de sentido” (p.87). Esta busca de sentindo é individual e intransferível, e o sentido da vida é mutável, cada individuo deve buscar algo o satisfaça e o objeto de satisfação modifica-se conforme a perspectiva do sujeito e sua existência.
Um Sonho de Liberdade
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O longa metragem “Um Sonho de Liberdade” (The Shawshank Redemption, 1995), escrito e dirigido por Frank Darabont, usa como base a novela de Stephan King e narra a história de Andy Dusfresne (Tim Robbins). Nas primeiras cenas do filme o personagem descobre que está sendo traído pela esposa, esta e o amante são assassinados e Andy é condenado por duplo homicídio, crime o qual não cometeu.
Posteriormente, o personagem é encaminhado para a Penitenciária Estadual Shawshank para cumprir prisão perpétua. Já na entrada do presídio é possível vê a institucionalização do personagem, pois ao entrar, o sujeito perde sua identidade, isso fica visível no uniforme que lhe é dado, cuja função é de homogeneizar. Na prisão o indivíduo recebe um estigma, e a disciplina que lhe é aplicada tem a função de torná-lo dócil.
Como afirma Foucault (1999):
o corpo humano entra em numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica de poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas de rapidez e eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim, corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis” (FOUCAULT, 1999. p. 110).
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A partir disso, pode-se observar que uma vez institucionalizado e “docilizado”, o sujeito pode em algum momento, se acomodar com sua condição diante do sofrimento, encontra conforto neste sentimento e dá significado a sua dor. Afinal a vida é sofrimento, e sobreviver é encontrar significado na dor, e se de algum modo, a vida tem sentido, há propósito na dor e na morte (FRANKL, 1984). Dentro do universo cinematográfico do longa o sofrimento está dissociado do desejo de vida, torna-se sentido da mesma, o sujeito resigna-se e confortavelmente acomoda-se a realidade que o circunda.
Isso ocorre com Brooks, um idoso que se encontra preso há cinquenta anos na prisão de Shawshank; ao ser liberto, não consegue se desvincular do ambiente penitenciário e se adaptar à sociedade, pois, o cenário datado antes de sua prisão era mais estático e quando foi liberto, havia se modificado, tornando-se mais dinâmico. O mundo da prisão era estável, diferente do ambiente que se apresentava a ele naquele momento “a liberdade de agora era fictícia, pois permanecia preso as regra estabelecida aos detentos. Havia, portanto, assimilado a identidade dos prisioneiros” (MOTTA, 2011, p.1). Assim, o personagem idoso comete suicídio, pois prefere isso a encarar o desafio de se adaptar a uma nova vida, não conseguindo ressignificar e encontrar sentido de vida neste novo momento que iria experienciar.
O filme retrata o cerne dos conflitos do ser humano no contexto penitenciário. Além de todo o sofrimento ocasionado pela privação de liberdade, Andy ainda sofre violência sexual de outros presos, sendo que chega até a se tornar passivo diante dessa situação, uma vez que as reclamações e pedidos de ajuda não são ouvidos. Mesmo diante do supracitado, o protagonista demonstra uma civilidade, uma serenidade no agir divergindo dos comportamentos dos demais, como cita Red, personagem o qual nos narra a história.
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Na prisão têm se todos os reflexos do contexto cultural de forma mais acentuada, assim, nota-se aspectos de uma sociedade individualista ainda mais forte no presídio uma vez que, não se pode confiar nas pessoas, pois, ocorre uma luta pela sobrevivência. Embora isso seja parte do cotidiano desses sujeitos, Andy consegue estabelecer relações de amizade, como ocorre com Red. O espirito de comunidade também se apresenta no filme, pois, os encarcerados, buscam estratégias de sobrevivência, seja por troca de favores ou contrabandos de alguns objetos feitos por Red para tentar amenizar a vida na cadeia.
Andy consegue desenvolver até mesmo o altruísmo, o que na vida lá fora talvez não fosse possível visto que, o personagem conta em algum momento que sua mulher se queixava que não conseguia compreendê-lo, interpretá-lo, sempre introspectivo. Porém, quando privado de liberdade, começa a repensar o sentido de sua vida e de suas práticas, desse modo, o personagem utiliza-se de sua experiência como bancário para facilitar sua vida e de seus companheiros.
Em relação a isso, temos uma cena emocionante na qual Red consegue que ele e seus companheiros trabalhem na área externa do presidio, na impermeabilização do telhado. O protagonista auxilia um guarda com seu imposto de renda, como recompensa solicita cerveja para seus companheiros, ao contemplar esse momento, os personagens sente como se tivesse retomado sua vida antes da prisão. Sem dúvidas, o personagem consegue manter sua motivação para sair daquele lugar, no caos, ele consegue redescobrir o sentido da vida, desenvolve estratégias e se utiliza de toda sua história e potencial criativo para conquistar a tão sonhada liberdade.
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Aproximação entre Viktor Frankl e Andy
Paiva (2009) aponta que a linguagem cinematográfica, em sua expressão, permite uma interação entre obra, autor e público, de modo que é possível alcançar uma abrangência intertextual, e ainda, a capacidade de olhar e interpretar o mundo sobre várias perspectivas. Assim, é possível recriar a vida, fato que se aproxima da filosofia, pois, o cinema revela as contradições da existência humana, mostrando seus conflitos e denunciando suas realidades.
A partir disso, percebe-se que o filme Um Sonho de Liberdade faz intertextualidade com a história do criador da logoterapia, Viktor Frankl, uma vez que assim como Frankl vivenciou os terrores de um campo de concentração nazista, o personagem do longa metragem passa por momentos angustiantes e é privado de liberdade por um crime que não cometeu.
Motta (2012) observa que a fotografia do filme nos mostra através das cores, uma alusão à Idade Medieval, período no qual os seres humanos viviam em conflito existencial, pairando entre o teocentrismo e o antropocentrismo; enquanto o primeiro estava ligado ao cristianismo, sendo que as pessoas pautavam-se nas leis bíblicas para controlar e docilizar os outros, o antropocentrismo configurava o desejo do ser humano se reafirmar, criar uma identidade e se fazer respeitar pelos outros.
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Nesse sentido, a história do criador da Logoterapia nos mostra esses paradoxos de existir e afirma que não há sentido apenas na beleza e gozo da vida, mas que também é possível encontrá-lo mediante experiências devastadoras, pois, mesmo que essas reservam apenas uma possibilidade de configurar a existência, a atitude a qual a pessoa se coloca em face à restrição forçada de fora sobre seu ser, pode produzir o sentido da vida (FRANKL, 1984, p. 63).
Como ressalta o autor:
Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá. Afinal de contas o sofrimento faz parte da vida, de alguma forma, do mesmo modo que o destino e a morte. Aflição e morte fazem parte da existência como um todo. (FRANKL, 1984, p. 63).
Nota-se que ambos passam por momentos de profunda reflexão e busca do sentido da vida, sendo este a principal força motivadora do ser humano. Para tal, é imprescindível a vontade de sentido, nada é mais insubstituível – mesmo em circunstancias adversas, do que vivenciar o insight, isto é, compreender que sua vida tem sentido (PEREIRA, 2007).
Frankl (1984), quando retrata esses momentos de imersão em si mesmo, elucida que a tendência para a intimização percebida por ele em alguns prisioneiros, possibilita a mais viva percepção da arte ou da natureza uma vez que a intensidade desta experiência faz esquecer por completo o mundo que o cerca e todo o horror da situação.
Vemos então, que mesmo diante de uma tragédia, o ser humano pode re-significar sua existência através de um ajuste criativo. Ser saudável existencialmente não implica necessariamente em não experimentar sofrimento ou viver em um estado de constante tranquilidade; o que consiste em equilíbrio existencial é a coragem de assumir riscos e situações novas, ou seja, a capacidade de desenvolver estratégias para vivenciá-las da melhor forma possível (FORGHIERI, 1996).
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Forghieri (1996) ressalta que a coexistência de opostos é que nos dá o verdadeiro significado de cada um dos extremos que acreditamos ser contrastantes em nossa vida cotidiana, porém, esses polos constituem uma totalidade, assim, “se consigo sentir-me verdadeiramente alegre é porque já me tenho sentido profundamente triste; se consigo sentir plenamente a ternura de uma convivência amorosa é porque já conheço a angústia de minha solidão” (FORGHIERI, 1996, p. 103).
Assim, Frankl e Andy conseguem mesmo privado de liberdade, desenvolver estratégias para sobreviver naquele local. O primeiro, por ser médico, utilizava-se dos seus saberes para ajudar os enfermos, enquanto que o segundo teve experiências como bancárias e utiliza-se disso a seu favor para conseguir recursos para amenizar a vida na prisão, como por exemplo, a reforma da biblioteca.
O fluxo do existir e dos acontecimentos, vão modificando o sentido de existir, pois, o ser humano é mutável. O existir está repleto de incertezas, mesmo quando o sujeito tenta se apoiar em experiências do passado, pois, o presente é também abertura para o futuro e este é incerto (FORGHIERI, 1996).
Vale ressaltar, que ambos elaboram planos de fuga, o que afirma mais uma vez a tendência auto realizante do ser humano, ou seja, o desejo de sempre melhorar e ir além, pois está intrínseco ao sujeito a vontade de expansão, a busca pelo sentido da vida. Frankl tinha no amor pela esposa – a qual também estava presa em outro campo de concentração, a motivação para se manter vivo, e Andy, por sua vez, mesmo não tendo mais laços afetivos, consegue encontrar em si mesmo o sentido de viver.
Frankl, além de sobreviver ao horror dos campos de concentração, contribuir como logoterapeuta na busca de sentido das pessoas ao seu redor durante o cárcere, ainda deu sentido ao seu sofrimento e dor ao elaborar a sua teoria, negando o pessimismo e dizendo sim à vida, em todos os seus aspectos.
Um simbolismo muito forte presente no longa metragem, diz respeito à fuga do personagem , pois, no início, o interlocutor acredita que Andy é culpado, este passou por um túnel impuro e imundo- o que também é retratado pelas cores frias da fotografia do filme, e saiu do outro lado, puro e limpo para recomeçar uma nova vida (MOTTA, 2012).
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REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, J. M. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei – Ano III – Número III – janeiro a dezembro de 2007. Disponível em: <http://www.ufsj.edu.br/portal-repositorio/File/existenciaearte/Edicoes/3_Edicao/Jorge%20Miranda%20de%20Almeida%20FILOSOFIA%20ok.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2016.
FRANKL, V. E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Porto Alegre, 1984.
FOUCAULT. M. Vigiar e Punir, Nascimento da Prisão. Ed. Vozes. Petrópolis, 1999.
FORGHIERI, Y. C. Saúde e adoecimento existencial: o paradoxo do equilíbrio psicológico. Revista Temas em Psicologia, vol.4 no.1 Ribeirão Preto, 1996.
MOTTA, C. M. M. Um Sonho de Liberdade – Análise Semântica. 2012. Disponível em:<http://leiturasinterdisciplinares.blogspot.com.br/2011/12/analise-do-filme-um-sonho-de-liberdade.html>. Aceso em: 28 de abril de 2016.
PEREIRA, I. S. A vontade de sentido na obra de Viktor Frankl. Psicologia, USP, Brasil, v. 18, n. 1, p. 125-136, 2007. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/pusp/v18n1/v18n1a07.pdf>. Acesso em: 8 de abril de 2016.
RODRIGUES, L. A. ; BARROS, L. A. Sobre o fundador da logoterapia Viktor Emil Frankl e sua contribuição à psicologia. Revista Estudo, v. 36, n. 1/2, p. 11-31s, , Goiânia, 2009. Disponível em: <http://espiritualidadesentido.yolasite.com/resources/sobre%20o%20fundador%20da%20logoterapia.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2016.
PAIVA, C. M. S. C. Cinema e Filosofia: Uma Interlocução Possível – A ética, a cultura organizacional e a estética da violência nos filmes Clube da Luta e Tropa de Elite. São Paulo, 2009. Disponível em: <http://portal.anhembi.br/wpcontent/uploads/dissertacoes/comunicacao/2009/dissertacao_celinamariasilvacastropaiva.pdf>. Acesso em: 05 de maio de 2016.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
UM SONHO DE LIBERDADE
Diretor: Frank Darabont
Elenco: Tim Robbins, Morgan Freeman, Bob Gunton, Clancy Brown;
País: EUA
Ano: 1995
Classificação: 16