Com seis indicações ao OSCAR:
Melhor Filme, Melhor Ator (Andrew Garfield), Melhor Diretor (Mel Gibson), Melhor Montagem, Melhor Mixagem de Som, Melhor Edição de Som.
Indicado a seis estatuetas do Oscar 2017 – inclusive de Melhor Filme –, Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, 2016) volta a projetar o polêmico Mel Gibson nos bastidores de Hollywood, depois de um longo período em que o ator/diretor vinha enfrentando uma série de denúncias que envolvem violência, alcoolismo e intolerância religiosa. Não por menos, Hacksaw Ridge retrata uma história real marcada por purgação, hiper-religiosidade e redenção.
Esta combinação serviu de combustível para que os críticos de Gibson considerassem o longa como uma espécie de autodefesa do norte-americano. Outros vão além, ao considerar que Mel Gibson se projeta inconscientemente na obra, o que de longe não diminuiria os estragos públicos causados por ele nos últimos anos. Sem se deixar levar pela falácia ad homini, a obra, de fato, (re)colocou o diretor nos holofotes do mundo cinematográfico. De forma merecida, pois é de um detalhismo irretocável e de uma produção primorosa.
Até o Último Homem é baseado na história real do adventista Desmond Doss (interpretado por Andrew Garfield) que serviu no Exército Americano durante a Segunda Grande Guerra. O jovem rapaz de fortes convicções religiosas enfrenta uma verdadeira via-crúcis para atuar na Batalha, já que está numa verdadeira contramão em relação a seus companheiros. A começar pelo fato de se recusar a pegar em armas e a matar, no entanto “salvou sozinho algo entre 50 e 100 soldados feridos, deixados para trás no alto de um penhasco quando a companhia bateu em retirada”, durante o sangrento enfrentamento de Okinawa, no Japão.
Sobre esta narrativa central, o site da revista Veja classificou que 80% do filme retrata com fidedignidade a história de Desmond, embora a vida do adventista contenha detalhes ainda mais impressionantes, não revelados na produção.
Desmond é um jovem altamente influenciado pela sombra maternal (para deleite dos freudianos e jungianos), por concepções religiosas arraigadas, e pela ausência de mediação saudável do pai. Além disso, de acordo com o crítico de cinema Marcelo Hessel, “esteticamente, Até o Último Homem é um filme de iluminação plena, como se não estivéssemos sob as sombras e as incertezas do século passado”.
Século conturbado
Até o Último Homem é um registro primoroso – em que pese a visão enviesada de Gibson – de um período histórico dramático, pelo olhar de um jovem atônito com as rápidas ambivalências impostas por uma modernidade que já dava sinais explícitos de fracasso em suas utopias. E, baseado em suas concepções pessoais e religiosas, Desmond Doss resiste bravamente. Como diriam Bauman e Karnal, em nome de uma racionalidade exacerbada, em nome de Deus (ou sem Deus como motivo), o período exacerba a sanha humana pela disputa. Dinâmica esta que chega a seu extremo na pós-modernidade, mesmo que sem as guerras sangrentas que marcaram o século anterior.
De resto, psicologicamente e filosoficamente falando, o filme nos coloca diante de uma realidade aterradora, defendida um século atrás pelo espanhol Miguel Unamuno, para quem “toda consciência é consciência da morte”, já que os humanos estariam irremediavelmente condenados a ter consciência da privação da imortalidade e, assim, sempre tendo de lidar com o sofrimento. Vale ressaltar, no entanto, de que longe de isso ser um problema, para Unamuno trata-se de uma possibilidade de redenção, como parece pender Até o Último Homem.
De acordo com Unamuno – que encontra algum paralelo com a doutrina de Sidharta Gautama e com as teses de Victor Frankel – a consciência da morte e do sofrimento pode desvelar em nós um senso ético acurado, se abraçarmos com humildade estas duas condições tipicamente humanas. “Se nos afastarmos disso, estaremos nos afastando não apenas do que nos torna humanos, mas também de nossa própria consciência”, escreveu Unamuno.
Até o Último Homem, desta forma, antes mesmo de ser uma tentativa de auto-redenção de Gibson (com ênfase no clichê crença-sofrimento-piedade), como prega parte da crítica, é uma obra de pegada ontológica-existencial. Neste ínterim, não há diferença entre viver e sofrer, algo inimaginável aos padrões aspirados na contemporaneidade. O que se faz com este sofrimento é o que diferencia os homens/mulheres, pois diante da possibilidade de enfraquecer o sofrimento, valeria tudo.
Sob esta ótica, a vida de Desmond Doss teria sido pobre se fosse diferente. Parece difícil pensar sob esta perspectiva, mas ela pode abrir caminho para uma existência marcada por profundidade e importância, o que demonstra ser uma marca da vida de Desmond, que resistiu a um cenário de crueldade e trilhou sob a égide do autossacrifício, da modéstia e da generosidade. Estes não são, obviamente, os lemas pós-modernos. Mas lembra duma faceta humana que, mesmo fora de moda, pode eclodir nos mais inimagináveis cenários.
REFERÊNCIAS:
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011.
O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011.
O Livro da Psicologia (Vários autores). São Paulo: Globo, 2013.
Crítica ao filme Até o Último Homem. Disponível em < https://omelete.uol.com.br/filmes/criticas/hacksaw-ridge/?key=121227 > . Acesso em: 23/02/2017.
A verdade é mais inacreditável que o filme. Disponível em < http://veja.abril.com.br/blog/e-tudo-historia/ate-o-ultimo-homem-a-verdade-e-mais-inacreditavel-que-o-filme/ > . Acesso em: 23/02/2017.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
ATÉ O ÚLTIMO HOMEM
Diretor: Mel Gibson
Elenco: Teresa Palmer , Sam Worthington , Vince Vaughn , Andrew Garfield
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: 16