Quando pensei em falar de Cássia, imediatamente me recordei da música da banda Francisco, hel Hombre, “triste, louca ou má”. A música libertária, expressa em melodias todo o significado de ser mulher na sociedade, ressaltando as opressões, repressões e os desafios desse papel.
Contrapondo tudo isso, Juliana Strassacapa, cantora integrante da banda, canta ao som da melodia sua alforria a todas essas imposições sociais. Logo, lembrar-se de cássia é inevitável. Uma música contemporânea dedicada a um ícone de desconstrução e (re)construção.
“Prefiro queimar o mapa
Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar”
Seria uma protagonista do confronto a “receita” social? NEGOU, várias vezes, imposições e prescrições. Cássia Rejane Eller queimou o mapa. Queimou tudo aquilo que lhe deram como pronto e refez caminhos, com muitas dores – acredito -, e viu cores onde jamais imaginara.
Como podemos descrevê-la? Limitá-la em palavras? Seria uma moça TRISTE? A menina tímida, reprimida, antissocial, filha de um militar, nascida no Rio de Janeiro em 1962, mas que mudava de cidade constantemente e, somente em 1981 quando retornou a Brasília, se apresentou artisticamente para a música.
Seria então LOUCA? Chocou a sociedade se mostrando confortável ao afrontar padrões, permitindo expressar a “Cássia” que ela quisesse e principalmente, a que não tinha nenhum medo de dizer através da música, seus ideais.
Mulher, homossexual com uma configuração diferente de relacionamento. Cássia foi casada durante 14 anos com Maria Eugenia Vieira e as duas não faziam questão de esconder a configuração conjugal diferente do formato tradicional. Antes de morrer a cantora deixou em vida, o desejo de que seu filho Francisco Eller ficasse com sua esposa. No Brasil, Cássia e Eugênia abriram caminho para a guarda homoafetiva.
Na visão sexista, um “macho”. Cabelo curto, roupas folgadas, voz rouca, comportamentos agressivos, pegava no “saco” em público e afirmava em alto e bom som, sua vontade de ter um pinto. Muito louca, como que aquela “mulher macho”, ela, que não hesitava em mostrar seus peitos durante os shows, apareceu grávida, usando vestido? Contraditória.
MÁ? Há possibilidades de ela também ter sido considerada uma mulher má, já que não se encaixava em nenhum estereótipo social. Cássia teve seu nome sugerido por sua avó, devota de Santa Rita de Cássia. Irônico, não? Pelas más línguas, Cássia era conhecida como triste, louca e/ou má.
Cássia dizia que:
Cantando eu sei mais de mim, você pode pensar que me conhece um bocado se um dia já conversou comigo, se leu alguma coisa que eu escrevi, se já foi para a cama comigo. Mas pode crer, você se espantará quando me ouvir cantar.
Cássia em seus shows era conhecida por sua intensidade, suas interpretações cheias de sentimentos. Sua postura era carregada de significado e militância, a cantora chegou a gravar oito discos.
“Cássia Eller” foi seu terceiro álbum, lançado em 1994, após o nascimento do seu filho Francisco Eller. O disco foi marcado por todas as características supracitadas, houve algumas regravações, mas também, lançamentos inéditos das músicas “Malandragem” e “ETC”. Malandragem acabou consagrando a voz da cantora e se tornou a número 1 na lista das músicas mais ouvidas no Brasil.
“Com você… meu mundo ficaria completo” lançado em 1999, foi o disco que se destacou pelo curso musical mais calmo que Cássia estava tomando. Após receber críticas de seu filho Chicão, Cássia procurou um estilo mais complacente para interpretar suas músicas. Para lhe auxiliar nesse desafio, se inspirou e procurou a ajuda do cantor, compositor e produtor musical Nando Reis. Desta vez, se mostrava mais contida em suas expressões corporais, mas jamais deixaria de expressar todas as emoções através de sua voz e dos acordes musicais peculiares.
Esse disco marcou a transição da cantora do rock “pesadão” para a MPB, mas Cássia não deixou de encantar seu público, ela provou mais uma vez que “Cássia Eller” era o símbolo das interpretações musicais e dava vida para tudo aquilo que reproduzia.
Seu último disco em vida, “Acústico MTV” foi lançado em 2001; também foi produzido por Nando Reis com participação de Luiz Brasil. Foi o disco que alcançou seu maior público, com mais de um milhão de cópias vendidas e pela terceira vez, a música Malandragem ficou entre as mais ouvidas no Brasil.
Mas quem era Cássia longe de toda essa construção social? Quem era Cássia longe de todo o preconceito disfarçado? Cássia era tímida, contida, reservada. Quem sabe, ela realmente ainda não era uma garotinha.
Cássia afirmava que “não nasceu para compor, nasceu para interpretar” e durante toda a sua carreira musical, esse traço sempre foi muito nítido. Digamos que a cantora passava por um processo de sublimação, e usava a música como um mecanismo de defesa, transformando os impulsos indesejados em algo menos prejudicial, em algo socialmente aceito.
“Música para mim foi uma fuga da minha incapacidade de viver socialmente com as pessoas, de se partilhar e compartilhar assim de uma conversa. Foi uma fuga, fuga da minha timidez” Cássia Eller
A música sem dúvidas, foi a libertação de Cássia, foi onde ela depositou toda a sua capacidade de se recriar dentro das suas limitações. Cássia Eller foi aceita pela música, como arte e como um meio de cultura. A música lhe abriu caminhos e lhe introduziu na sociedade repressora e preconceituosa, onde só depois do seu grande sucesso como artista, as pessoas foram dando espaço para a subjetividade da cantora.
Hoje, eu percebo a grande influência que Cássia Eller teve/tem no mundo LGBT, nos caminhos que a cantora abriu para pessoas pertencentes a essa classe. Mulher, lésbica, mãe, filha, cantora, doida, triste, louca, má… Para os infinitos adjetivos que lhe dão, eu só consigo imaginar Cássia na sua essência, naquilo que ela queria ser, longe de qualquer estigma.
Eu gostaria de poder ouvi-la interpretar essa música “triste, louca ou má”, porque na minha insignificante leitura de sua vida, consigo imaginá-la em cada estrofe.
“Eu não me vejo na palavra
Fêmea: Alvo de caça
Conformada vítima
Prefiro queimar o mapa
Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar
E um homem não me define
Minha casa não me define
Minha carne não me define
Eu sou meu próprio lar”
Por fim, espero que ao ouvirem a música, consigam identificar Cássia do início da sua jornada até o dia de sua morte. Porque o que ela fez até o último momento, foi lutar contra o título de “mulher” que lhe deram ao nascer.