Do outro lado do Divã: o Devir do Analista

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Recordo as aulas de psicanálise na graduação e as primeiras impressões diante da leitura de alguns textos de Freud e de obras sobre a psicanálise. Sempre me saltou aos olhos o fato de que a psicanálise nasce na clínica e que sua teoria é construída a partir dela e não em um movimento inverso. À medida que novas demandas e dilemas surgiam, Freud reformulava seu arcabouço teórico, reconhecendo quando aquilo que havia elaborado já não era suficiente. A clínica, portanto, é atravessada pelo zeitgeist no qual Freud estava inserido, e se reinventa continuamente. Essa compreensão me atravessou na formação inicial e retorna agora, durante a pós-graduação, especialmente porque, na prática clínica, ocupo exclusivamente a posição de sujeito em análise. Como entusiasta da psicanálise e estudiosa da teoria, reconheço que ainda não vivencio a experiência do analista, aquela que permite perceber e acompanhar a emergência dos novos sintomas que se apresentam à clínica contemporânea.

Dito isso, o que mais me chamou a atenção nas reflexões realizadas durante o módulo sobre os Novos Sintomas: Anorexia, Bulimia e Toxicomania foi justamente a reafirmação de que a clínica é sempre um chamado do tempo. A clínica psicanalítica da qual nos ocupamos não é exatamente a mesma clínica da qual Lacan falava, assim como a clínica da qual Lacan falava não era exatamente a mesma clínica praticada por Freud. “Em suma, a renovação da prática da psicanálise renova a clínica psicanalítica” (BRODSKY, 2013, p. 9). Observa-se, hoje, um deslocamento em direção a uma clínica marcada predominantemente pela psicose, diferentemente do cenário majoritariamente neurótico que orientou Freud e Lacan. A cada dia, novos sintomas e novas formas de gozo emergem, muitas vezes ultrapassando as vias clássicas, ainda que a teoria freudiana e lacaniana continue a oferecer um fundamento sólido para a prática clínica.

Nesse contexto e neste novo tempo, destaca-se que o analista é convocado a reinventar sua posição e a sustentar a função tradicionalmente atribuída ao Nome do Pai. Tal exigência se torna particularmente evidente quando se considera o regime discursivo atual, marcado pela lógica capitalista e por seus efeitos sobre o laço social. As relações tanto entre sujeitos quanto entre sujeito e objeto passam a operar sob o primado dos gadgets, objetos de gozo que encarnam a oferta de uma ilimitada satisfação. Trata-se de um cenário em que o imperativo do gozo se sobrepõe ao limite, convocando o sujeito a uma experiência quase hedonista de realização imediata: tudo se pode, desde que se pague, sem que isso implique necessariamente em “bancar” no sentido simbólico.

Nessa lógica, no discurso capitalista, como formulado por Lacan, não há castração e, onde a castração é recusada, a Lei perde sua função de corte e de borda, deixando o gozo à deriva. É nesse ponto que emergem novas configurações sintomáticas, novas formas de gozo, cuja proliferação testemunha justamente o enfraquecimento do limite simbólico. É diante desse real que o analista é chamado a operar. O analista, então, é chamado a bordiar o gozo que precisa ser encapuzado. Reconheço que se impõe, para mim, um desafio de compreender como se dá essa operação na prática clínica, pois meu olhar permanece situado no campo teórico e na posição de sujeito que se deita no Divã. Dessa perspectiva, escapa-me ainda a apreensão mais concreta do fazer analítico diante dos impasses contemporâneos e das novas formas sintomáticas que ofuscam a leitura das estruturas clássicas.

Enfim, nesse cenário se fez imprescindível compreender esses novos modos de gozar, e considerar o estatuto do gozo autoerótico na clínica contemporânea. Trata-se de um gozo que não passa pela falta, pelo desejo ou pelo Outro, ele está à margem, sem recorrer à mediação simbólica e nem à lógica da castração, configurando-se como uma satisfação direta, repetitiva e solitária. Segundo Lacan, esse é um gozo que está mais próximo da coisa (das Ding), do real.

 

O que quer dizer das Ding, a Coisa? Quer dizer que a satisfação, a verdadeira, a pulsional, a Befriedigung não se encontra nem no imaginário, nem no simbólico, que ela está fora do que é simbolizado, que ela é da ordem do real (MILLER, 2012, p. 12).

Esse rompimento com o gozo fálico, que está submetido à lógica da castração e se insere no campo do Outro, possibilita o aparecimento na clínica desses novos sintomas, como a compulsão alimentar, os vícios tecnológicos, a compulsão por compras, a toxicomania, entre outros. É interessante constatar que o gozo do toxicômano se estrutura precisamente fora da relação com o Outro, configurando-se

como um gozo autoerótico e desresponsabilizado. Ao introduzir a droga como objeto de satisfação imediata, o sujeito estabelece um circuito fechado de gozo que não passa pela mediação simbólica. Trata-se de um modo de gozar que contorna a castração e tenta tamponar a falta, operando como uma espécie de curto-circuito do desejo (TÓTOLI; MARCOS, 2017).

Isto posto, observa-se que as novas formas de sofrimento psíquico que emergem na contemporaneidade estão profundamente relacionadas à fragilização da função do Outro e ao declínio das estruturas simbólicas que orientavam o desejo. Quando a castração perde seu lugar regulador, o sujeito fica exposto a modalidades de gozo desbordadas, frequentemente autoeróticas e pouco mediadas. O desafio do analista, a meu ver, é justamente acompanhar esses percursos de gozo, recolocando em jogo a possibilidade do desejo e reinstaurando um espaço onde a palavra possa produzir efeitos de sujeito. É diante desse cenário que se fortalece, para mim, o desejo de tornar-me analista e ocupar o outro lado do Divã, sustentando o lugar (ou o não lugar) de escuta que permite fazer operar a palavra, restituir o intervalo necessário ao desejo e acompanhar o sujeito na construção de um percurso que não se reduza ao imperativo de gozar, mas que abra vias possíveis de subjetivação, mesmo que seja somente para a redução de danos.

* Nota da Autoria:

O presente texto é fruto das atividades desenvolvidas na Especialização em Psicanálise Freudiana e Psicanálise Lacaniana (Dupla Certificação) da Faculdade Monte Pascoal, sob orientação do Prof. Ms. Leandro Borges, elaborado pela discente Catarina Stacciarini Seraphin. Trata-se de uma produção acadêmica vinculada às exigências formativas da referida especialização.

Referências:

BRODSKY, Graciela. A loucura nossa de cada dia. Opção Lacaniana Online – Nova Série, São Paulo, ano 4, n. 12, nov. 2013.

MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana Online – Nova Série, São Paulo, ano 3, n. 7, mar. 2012.

TÓTOLI, Flávia Costa; MARCOS, Cristina Moreira. Psicanálise e Toxicomania: o gozo da droga e a ruptura com o gozo fálico. Cad. Psicanál. (CPRJ), Rio de Janeiro, v. 39, n. 36, jan/jun. 2017.

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Mestre e Graduada (Licenciatura) em História pela Universidade Federal do Goiás (UFG). Acadêmica de Psicologia da ULBRA e da Pós Graduação em Psicanálise (Freudiana e Lacaniana - dupla formação) pelo Instituto Monte Pascoal.

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